Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
O CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO E SUAS TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS. Artur Cesar Isaia* RESUMO: O objetivo deste artigo consiste em enfatizar alguns aspectos significativos das transformações apresentadas no campo religioso brasileiro. Utilizando historicamente o conceito de campo de Bordieu, o texto se aproxima diacronicamente de alguns importantes aspectos da economia das forças religiosas em curso no Brasil e as considera a partir da produção científica dos pesquisadores brasileiros que têm abordado o assunto nos últimos anos. PALAVRAS CHAVE: campo religioso, história das religiões, religiosidades ABSTRACT: The main objective of the article is to emphasize some significant historical changes currently presented by the Brazilian religious field. Historically using Bourdieu´s notion of field, the text diachronically approaches the stands of some important components of the economy of ongoing religious forces in Brazil. And starts considering them from the scientific production of Brazilian professionals who have reflected upon the subject over the past years. KEY WORDS: Religious field, History of the Religions, Religiosities. Pensar as transformações pelas quais passou o campo religioso brasileiro é
pensar, antes de tudo, na extrema complexidade do universo de crenças entre nós. Essa
não é uma característica atual. Historicamente já nascemos sob o signo desta
complexidade, a partir da experiência ibérica totalmente distante da uniformidade
católica com que foi identificada. Para além da idéia de uma monarquia portuguesa,
cuja fidelidade à ortodoxia católica foi a característica dominante, a experiência dos
colonizadores já acenava para uma complexidade étnica, cultural, lingüística e religiosa
A observância aos ensinamentos de Roma estava longe de estender-se, de sua
majestade fidelíssima1, a seus súditos. Gilberto Freyre2 relata com admirável força
plástica o que era o culto público à eucaristia em Portugal do período pós-medieval,
onde a custódia com o Santíssimo Sacramento dividia espaço nas ruas com figuras
mitológicas, danças de ciganos e de africanos. A carnavalização das cerimônias
católicas no Brasil repetia-se nos chamados “triunfos eucarísticos”, os quais muitas
vezes remetiam para analogias plásticas e estéticas, com o mundo pré-cristão, fenômeno
* Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em História. 1 Título dado pelo papa aos reis de Portugal a partir de 1748. 2 Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
não restrito à América Portuguesa.3 A evidência histórica parece ir ao encontro da
famosa frase de Oswald de Andrade ao celebrar no Manifesto Antropofágico a ausência
do primado da lógica formal entre nós: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi
carnaval. O índio vestido de senador do império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas
óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.” 4
Essa porosidade identitária, não redutível apenas à religião pode ser pensada
como uma evidência de longa duração, capaz de dar sentido à compreensão do campo
religioso brasileiro. Curiosamente, à nossa experiência histórica de ser isso e aquilo ao
mesmo tempo, conforme admiravelmente resumiu Pierre Sanchis,5 sempre se contrapôs
o discurso das identidades fixas, da unicidade estatal, religiosa ou étnica.
Construímos um estado nacional em cima do particularismo regional e daí as
lutas da primeira metade do século XIX. Hipertrofiamos o estado, conferindo a ele o
papel de construtor da sociedade, claramente na ditadura varguista. Tivemos que
enfrentar a miopia das elites que se queriam brancas e europeizadas, malgrado a
experiência de colonizadores em cujas veias circulava a compósita presença de mouros,
negros, judeus. Essa miopia chega aos nossos dias, com o preconceito religioso e racial
Há pouco tempo, a mídia divulgou o ataque de seguidores de uma igreja
evangélica a um centro de umbanda no Rio de Janeiro. Tudo em nome de uma
uniformidade religiosa, da reafirmação de uma identidade dual e frontal, incapaz de
pensar-se no plural e de afirmar o encontro que historicamente nos formou. Casos como
o relato anterior não parecem ser esporádicos, tanto que circula na Assembléia
Legislativa do Rio de Janeiro, um projeto de lei para a criação de uma delegacia
especializada em crimes de natureza religiosa e racial.
Na primeira metade do século XX a igreja católica ainda mantinha viva a leitura
da história brasileira, cuja metanarrativa marcava a ascendência do catolicismo e de um
construído português “branco e civilizado”. Em plena década de 1950, o cardeal primaz
3 Ver a este respeito: TOLEDO, José Luiz Dutra de. Simbologia e luxo no triunfo eucarístico – Vila Rica – 1733. Dissertação de Mestrado em História. Franca: UNESP, 1990. 4 Manifesto Antropofágico.
http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html, acessado em 18/07/2007. 5 SANCHIS, Pierre. O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In: HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na América Latina e no Caribe (1945-1995). Petrópolis: Vozes-CEHILA, 1995. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
do Brasil, D.Augusto Álvaro da Silva, chorava copiosamente a liberdade religiosa e o
reconhecimento do candomblé como religião, afirmando que Deus havia “feito” a Bahia
Grande Deus! O candomblé na Bahia! Maldita hora em que se legitimou entre nós esta baixa e ignóbil prática de ritos africanos [.] Quem diria? Na terra de Santa Cruz, no Brasil dos católicos descobridores, na Bahia da Cruz Cabralina que abrigou e protegeu a terra nova, que nascia apenas, na Bahia dos catequistas que arrancaram amuletos aos peitos dos selvagens entregando-lhes a Crus de Jesus Cristo e lhes ensinando a pronunciar os nomes de Jesus e de Maria [.] pretender atribuir foros de brasilidade e de religião ao que pertence apenas ao africanismo fetichista, bronco e rude! Provera a Deus que chegasse o grito de nossa alma de pastor antustiado e aflito pedindo restrições a esta licensiosidade dos candomblés africanos, na Bahia a quantos possam inlfuir para a cessação de prática tão contrária à fé nacional e à civilização brasileira. Pedimo-lo, em nome de nossa Constituição, em nome de higiene moral e sanidade mental de nossa gente, pedimo-lo pela Bahia sempre católica e não fetichista, pela Bahia civilizada e culta e não por uma Bahia selvagem e maninha, pela Bahia branca e altiva, como Nosso Senhor a fez, e não por uma Bahia negra e politeísta como procuram apresentá-la nos terreiro de candomblé, irmão gêmeo da escravidão africana.6
Na mesma década de 1950, o arcebispo de São Paulo D. Carlos Carmelo de
Vasconcelos Motta louvava as excelências eugênicas da “estirpe brasileira”, onde não
havia lugar para a negritude fetichista:
Teve o Brasil cristão uma origem nobre e eugênica, filho que é e bem nascido, da católica
civilizadores e evangelizadores “que a fé e o império iam dilatando” em cada uma de suas conquistas, através do mares e dos continentes.7
A obsessão uniformizante e os delírios branqueadores não são monopólio do
catolicismo pré-conciliar brasileiro. Na própria umbanda, que para alguns analistas
impunha-se como religião-metáfora da vida brasileira, os interditos contra a passado
africano são partes constitutivas da sua história. Em trabalho publicado no final dos
anos 1990, nós analisávamos as lutas intestinas ao campo mediúnico brasileiro, nos
quais a Umbanda, nos seus primórdios, através de seus intelectuais, tentava a
aproximação desejável com o letramento do espiritismo, marcando claramente seu
afastamento do caráter ágrafo do candomblé.
6 SILVA, D. Augusto Álvaro da. Pastoral. Salvador, Era Nova Ltda., 1950, p. 6-7. 7 MOTTA, D. Carlos Carmelo de Vasconcelos. Panorama religioso do Brasil no XXXVI Congresso Eucarístico Internacional. Boletim Eclesiástico. jul./ago.1955, p. 235. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
Os intelectuais de umbanda buscavam a anulação de qualquer resquício de
africanidade na umbanda, recuando suas origens para os hindus. Mais do que isso, os
ensinamentos dos hindus, nesta visão, foram deturpados e amesquinhados ao serem
apropriados na África negra. A umbanda no Brasil resgataria esse conhecimento,
herdeiro de uma tradição cultural “superior” e abastardada pelos negros. É tão gritante a
anulação do passado negro pelos primeiros intelectuais da umbanda que o próprio
samba e o carnaval são vistos como evidências das sobrevivências bárbaras entre nós.8
Ou seja, as elites procuravam a miragem de um mundo civilizado e encontravam
barbárie. Moviam seus projetos pelo devaneio de progresso e defrontavam-se com o
Em estudo sobre as representações do “ser brasileiro” produzidas pela elite
brasileira na república velha, Maria Regina Naxara mostra a persistência de uma
definição do brasileiro, justamente pela ausência do que se esperava que pudesse ser, ou
seja, por aquilo que lhe faltava. O brasileiro era visto como elemento despreparado e
imaturo para o exercício do trabalho livre e para a sociedade do progresso que se
prentendia. Com propriedade conclui a autora que é “instigante constatar que essa
imagem esteve presente em todas as concepções e propostas políticas do período, tanto
Pensar hoje o campo religioso brasileiro, sem dúvida nenhuma é pensar sobre
essas realidades de longa duração, aparentemente superadas pelo tempo, mas que
reaparecem a todo momento, relacionadas com a violência física contra os pobres,
contra os negros, contra os índios, contra os considerados ainda em nossos dias
diferentes de um brasileiro inexistente, produto dos delírios (o problemático é que não
são apenas delírios) de parte da elite brasileira, mas também de um padrão de
comportamento extremamente assumido por diferentes segmentos sociais no Brasil de
Da violência simbólica perpetuada pelo catolicismo pré-conciliar à “guerra
santa” movida pelos neopentecostais de hoje, o que se vê é a persistência da afirmação
de um projeto identitário totalmente antagônico com nossa formação histórica e com a
8 ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo: a obra dos intelectuais de umbanda no Brasil da primeira metade do século XX. Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 11(11):97-120, 1999. 9 NAXARA, Márcia Regina C. A construção da idendidade: um momento privilegiado. Revista Brasileira de História. 11(23-24):184. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
realidade do Brasil de hoje. Fomos ou somos um país católico? Somos hoje um país
evangélico? Somos o maior país espírita do mundo? Afinal qual é o peso da religião na
formação do “ethos” cultural brasileiro na atualidade?
Estas questões podem ser enfrentadas ao pensarmos de forma diacrônica a noção
de campo de Pierre Bourdieu. Exatamente por estarem implícitas na noção de campo
algumas idéias muito importantes, capazes de emprestar inteligibilidade às
transformações nas configurações históricas das religiões; às articulações possíveis
entre elas, a sociedade e a cultura, bem como as relações urdidas entre as próprias
religiões. Refiro-me às idéias de especialização, de tensão, de legitimação e de capital
simbólico. Assim, todo o campo religioso tem inteligibilidade a partir da lógica da
tensão. Tensão esta entre sujeitos especializados frente à manipulação e à familiaridade
com o sagrado (vamos resumir aqui as figuras “clássicas” de profetas, sacerdotes,
Obviamente profetas, sacerdotes e leigos são reconhecidos com legitimidade
suficiente para relacionarem-se com o sagrado a partir de condições históricas
específicas, que podem muito bem gerar novas especializações e com elas novas formas
Esta legitimidade, reconhecida socialmente, tem para Bourdieu uma analogia
clara com o mundo econômico, assim como a noção de campo. Se bem que Bourdieu
deixe claro, tanto a autonomia do campo, quanto a irredutibilidade do campo cultural à
economia. É necessária a presença de uma acumulação simbólica como respaldo à
legitimidade dos agentes do sagrado. Novamente voltamos para a relação entre campo e
história. A acumulação simbólica que ampara a legitimidade de quem se relaciona
diretamente com o sagrado é dinâmica, temos momentos e lugares onde a figura do
profeta pode ser mais reconhecida do que a do sacerdote, há momentos em que a crença
predominantemente mágica prescinda de uns e outros, etc. O caráter histórico das
relações entre os detentores de capital simbólico no interior do campo religioso é
resumido por Bourdieu desta forma: “Toda seita que alcança êxito tende a tornar-se
Igreja, depositária e guardiã de uma ortodoxia, identificada, com as hierarquias e seus
dogmas, e por essa razão, fadada a suscitar uma nova reforma.”10
10 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
O campo religioso brasileiro na atualidade apresenta uma complexidade empírica
enorme, marcada pela emergência de componentes novos, voláteis, que aparecem e
desaparecem de uma maneira tão rápida que não chegamos a registrá-los. Por exemplo,
dissidências de dissidências parecem colocar, sobretudo as igrejas neopentecostais
frente a uma imagem refletida ao infinito, como na contraposição de dois espelhos.
Igualmente adquirem visibilidade figuras como a do empresário da religião ou do
sagrado, já proposto por Peter Berger11, ou especialistas em jogos oraculares como
estudou Silas Guerreiro12, ou em terapias das mais diversas, que integram hoje a
chamada “cultura nova era”, investigados por Sônia Maluf13.
A articulação de novos componentes ao campo religioso brasileiro, obviamente,
que se dá à medida que os mesmos passam a desfrutar de credibilidade. Quando suas
prescrições ou interpretações do mundo ganham o que é fundamental, na acepção de
Bourdieu, para valorizá-los no interior do campo: a legitimidade. Pode-se argumentar
que consultas a cartomantes e demais especialistas em jogos oraculares, que a visita a
terapeutas aparentados com um “outro lado” não são nenhuma novidade em se tratando
de Brasil. O que há de novo é que esta visibilidade se dá, não apenas junto com a
emergência numérica, tendencial, mas acompanhada de um novo reconhecimento de
suas eficácias, que marca sua independência frente a um “idioma único”, capaz de
querer traduzir hegemonicamente a realidade religiosa e cultural brasileira.
Dito de outra forma, temos a emergência de componentes do campo religioso
brasileiro, que abandonam sua posição de subordinação frente à crença de um Brasil
eminentemente católico ou ao projeto de um Brasil evangélico e desafiam a realidade
dos censos. Portanto, além da contestação à identificação católica do Brasil, temos o
contraponto a qualquer outra forma de identificação unilateral, que passa pelo
espiritismo e religiões neopentecostais. Esta indefinição levou Pierre Sanchis a escrever
11 BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985. 12 “Quer ver o seu futuro, seu moço?” Uma interpretação dos jogos divinatórios na sociedade contemporânea In: ISAIA, Artur Cesar (org). Crenças, sacralidades e religiosidades. Entre o consentido e o marginal. Florianópolis: Insular (no prelo). 13 Peregrinos da Nova Era: itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 1990. In: ISAIA, Artur Cesar (org.) Op.cit. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
um primoroso artigo, há alguns anos, onde o título encaminha claramente a
problemática analisada: “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões”? 14
O projeto de reconhecer o catolicismo como metanarrativa a partir do qual
ganhava visibilidade a história religiosa do Brasil está presente, não só nas tentativas da
hierarquia católica pré-conciliar em ler a história do país, quanto na fase pós-conciliar,
notadamente na teologia da libertação. Na fase pré-conciliar, nós mesmos analisamos
esta tentativa, que, a partir da primeira missa, criou um mito fundante, que deveria
cumprir a função de tornar a narrativa histórica sempre um rememorar de um instante
original. O recurso da hierarquia em fixar a primeira missa como mito fundamte da
nacionalidade brasileira remete-nos outra vez a Bourdieu, mais precisamente, às suas
reelaborações à noção de rito de passagem propostas por Arnold Van Gennep15:
Assim, os bispos tentavam “fazer ver a alguém o que ele é”, ou o que gostariam que fosse. A primeira missa instauraria nesse projeto, uma identidade, mas ao mesmo tempo uma diferença. Acenando com o modelo prescrito como “naturalmente” verdadeiro, os bispos davam cores a uma “irrealidade pagã” [.] Esta diferença só poderia ser resolvida com a aceitação do modelo prescrito como verdadeiro e “nomizante”. Surge como decorrência óbvia o trabalho da igreja, capaz de transformar o gentio em cristão, condição sine qua non para pensá-los como brasileiros.16
Antônio Flavio Pierucci já mostrava como o clero católico, após a proclamação
da república, construía uma verdadeira “demofilia”, contrapondo as elites que se
queriam modernas à grande maioria do povo brasileiro, católico: “O povo, ao contrário,
é profundamente religioso, humilde, oprimido por esta minoria de ateus agnósticos.”17
A perpetuação deste discurso, no qual a realidade brasileira é simplificada, acenando
para uma pretensa “essência católica”, curiosamente não deixou de estar presente nos
teólogos da libertação no Brasil. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke notaram o
conteúdo conservador com que se constituiu o discurso da teologia da libertação no
Brasil, incapaz de “reconhecer os sinais de pluralização religiosa já então em curso”18.
14 SANCHIS, Pierre. Op.cit. 15 BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Editora da USP, 1996, p. 97-106. 16 ISAIA, Artur Cesar. A hierarquia católica brasileira e o passado português. Op. Cit., p. 237. 17 PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. 18 SELL, Carlos E.; BRUSEKE, Franz J. Mística e sociedade. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 208. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
Para esses autores, a teologia da libertação só abandona a representação-limite
do ser brasileiro com o catolicismo, no momento em que, a partir do final da década de
1980, seu modelo e sua inserção na igreja brasileira entram em crise, reorientando-se na
direção de uma leitura mística, no qual, tanto Frei Beto quanto Leonardo Boff
reconhecem como elementos fundamentais para a compreensão do campo religioso
brasileiro, tanto a subjetivação religiosa, quanto a secularização das instituições
A subjetivação religiosa, apontada pelos teólogos da libertação como um dos
componentes da vivência religiosa contemporânea, vai ao encontro de processos que,
ultrapassando o religioso, dão conta da formação de um novo sujeito na chamada pós-
modernidade, capaz de poder escolher relações de pertencimento a comunidades das
mais diversas. Aí está uma das características principais da pós-modernidade para Jean-
François Lyotard: as comunidades livremente assumidas tomam o lugar do antigo dever
histórico, centrado na solidariedade étnica, religiosa ou mesmo nacional, todas elas
embasadas em metanarrativas totalizadoras, relativizadas no presente.20 Disso advém
fenômenos imprescindíveis à compreensão do campo religioso contemporâneo no
ocidente, como novas perspectivas de conversão e a possiblidade dos trânsitos
religiosos. A esses fenômenos junta-se o que Françoise Champion chama de “religiosité
flottante”21, que, amparada no individualismo leva ao declínio das religiões tradicionais
e a inventividades sincréticas sempre modeladas por um “arranjo pessoal”.
Louis Dumont refere-se ao individualismo que se afirma a partir da
independência de cada um a limitações importas pelas formas tradicionais de
solidariedade e pertencimento, a uma atitude voltada à possibilidade de cada um cuidar
de si e ponto final22. Esta atitude tem diretas relações com a reconfiguração do campo
religioso brasileiro contemporâneo. Em recente artigo em que comenta os números do
censo de 2000 Antônio Flávio Pierucci buscou a compreensão para o recuo, não só do
catolicismo, quanto da umbanda e do candomblé, fazendo uma reflexão a partir de
19 Idem. 20 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. 21 CHAMPION, Françoise. Religieux flottant, ecletismo et syncrétismes. In: Delumeau, Jean. (org). Le fait religieux. Paris: Fayard, 1993. 22 DUMONT, Louis. Essais sur le individualisme. Paris: Le Seuil, 1983. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
Weber, em “Rejeições religiosas do mundo e suas direções”. Mais precisamente da
interpretação weberiana de Mt 10,34 (“Não vim trazer a paz, mas a espada”).
Weber está se referindo ao efeito social dissolvente do que chama de
“religiosidade soteorológica congregacional”, e sua capacidade em criar uma nova
comunidade, dissolvendo laços anteriores de sangue ou pertencimento cultural. Lemos
em Weber: “A profecia criou uma nova comunidade social, particularmente quando ela
se tornou uma religião soteriológica de congregações. Com isso, as relações do clã e do
matrimônio foram, pelo menos relativamente, desvalorizadas”.23 A partir de Weber,
Pierucci analisa o sucesso das religiões, não direcionadas para a manutenção de uma
herança cultural ou étnica (como o candomblé ou a umbanda), mas para o indivíduo,
capaz de renascer em uma comunidade que celebra o novo, que “destribaliza o índio e
des-territorializa .o vizinho, fazendo do estranho o verdadeiro próximo.24.
O neopentecostalismo seria uma amostra eficiente deste processo. Penso que o
insight da leitura weberianade Pierucci elucida, em grande parte, as transformações
históricas apresentadas pelo campo religioso brasileiro na atualidade, onde a sociologia
da religião centrada na celebração da sociedade parece não dar mais conta de processos
de interpelação religiosa, cada vez mais marcados por experiências subjetivas e por
percursos religiosos de narrativa cada vez mais biográficos. Inclusive está aí um
excelente campo de pesquisa, notadamente àqueles afeitos à história oral.
Referências
http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html,
18/07/2007. BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Editora da USP, 1996, p. 97-106. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
23 WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: Textos Selecionados.São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 244. 24 PIERUCCI, Antônio F. Religião como solvente. Uma aula. Novos Estudos. (75):.125, julho, 2006. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859 Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas _______________________________________________________________________________
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WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: Textos Selecionados.São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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