SOBRE O GERÚNDIO E “GERUNDISMO”: UMA ANÁLISE
“Precisava desenferrujar gerúndios, gerundivos,e sobretudo, meus verbos irregulares” , IssaisPissoti, Aqueles cães malditos de Arquelau. 2ªed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
É surpreendente o clima emocional e hostil em torno da presença no por-
tuguês brasileiro falado e escrito de estruturas que contêm ir+ estar+V____NDO como nas frases: “Vou estar transferindo R $ 3.000,00 de suaconta bancária” e “Ele vai estar dormindo”. O uso do gerúndio nas referidasfrases é chamado de “gerundismo”. Os formadores de opinião rotulam taisconstruções de “terrível praga”, “vício”, “maldito gerúndio”, “modismo”,“gerúndio bastardo”, “gerúndio desproposital”, “patinho feio do estilo”, “sambado gerúndio doido” e “o gerúndio assassino”. Com respeito a este último, cabea pergunta: o que exatamente o gerúndio estaria assassinando?
O discurso antigerundista2 constrói um quadro no qual a própria saúde do
idioma nacional é questionada. O emprego das metáforas sugere um idioma“doente” e usuários “infectados”, que lembra uma verdadeira “epidemia”, fora
Quero agradecer a leitura crítica dos seguintes colegas: Gladis Massini-Cagliari, Marli Qua-dros Leite, Renato Miguel Basso e Sumiko N. Ikeda. As falhas são da minha responsabilidade.
A polêmica em torno do gerúndio trouxe vários neologismos para o português: gerundismo,gerundizar e antigerundista. É bom lembrar que existe o termo gerundivo que se refere ao“particípio do futuro passivo latino” (Aurélio de Holanda Ferreira, Novo Dicionário daLíngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986, p. 685. Alguns exemplos em portu-guês são: doutorando, graduando, formando. Existem em português os adjetivos “fervente” e“corrente”, antigos particípios latinos, relacionados com o gerúndio V___NDO. O adjetivo“gerundial” está arraigado no idioma. O enunciado “chovendo, não sairei” é, segundo a análisede Bechara (2000: 155) uma oração subordinada adverbial condicional reduzida de gerúndioou reduzida gerundial.
de controle que assola a nação e “contamina” o idioma nacional. Essa seria,então, mais uma crise construída para acompanhar as outras crises de ordempolítica, econômica e social, bem mais sérias que realmente comprometem a“saúde” da nação!
Surge no discurso uma metáfora militar, pois os antigerundistas falam da
necessidade de “combater” a estrutura, defender e proteger a língua portugue-sa do Brasil da “invasão” do gerúndio infeliz. As armas utilizadas para extirpara referida forma indesejada são os portais existentes na rede de computadoresque têm por nome: “Manifesto antigerundista”, “Odeio o gerúndio” e “Campa-nha contra o gerúndio”. Existe também devidamente marcado no calendário –“O dia contra o gerúndio”. Um dos resultados negativos de tais movimentos éque eles tendem a semear certa insegurança lingüística entre os falantes deportuguês.3
Um grande desserviço ao público é a regra gramatical sugerida pelo “Ma-
nifesto Antigerundista” que adverte categoricamente: “O gerúndio NUNCAvem depois de um verbo no infinitivo.” Basta observar que alguns exemplosperfeitamente de acordo com a norma da língua portuguesa desmentem a re-gra proposta: “Enquanto você arruma a cozinha, vou estar passando o aspira-dor.”/ “Enquanto você resolve seus assuntos, eu vou ficar esperando aqui”.4 Ogerúndio passando vem depois do verbo auxiliar (estar) no infinitivo.
Com o objetivo de apresentar alguns argumentos com a finalidade de pro-
porcionar uma outra reflexão a respeito do gerúndio em português, divido otrabalho em oito partes. Na primeira, argumento que o gerúndio é parte integraldo sistema verbal da língua portuguesa. Na segunda parte, refiro-me aogerundismo e pergunto se o fenômeno é lingüístico ou extralingüístico. Na ter-ceira parte do artigo, pergunto se a construção V +estar+ V____NDO é umfenômeno novo. Na quarta parte, comento as noções de duração e pontualida-de (finalidade) com respeito ao gerúndio. Na quinta parte do trabalho comentoas considerações de Possenti (2005) e Ribeiro (2000) sobre o gerúndio. Na
Certa insegurança se observa também no texto do articulista, ensaísta e autor de telenovelas,Walcyr Carrasco. Cf. Walcyr Carrasco, “Certo ou errado”, Veja, São Paulo, 16 de fevereiro de2005. Carrasco escreve nestes termos: “A Língua Portuguesa está mudando. Se é um processobom ou ruim, tenho minhas dúvidas” (p. 138).
É plenamente possível em português empregar o presente do indicativo: “Enquanto vocêarruma a cozinha, vou passar o aspirador”/ “Enquanto você resolve seus assuntos, vou espe-rar/ vou ficar aqui”. O problema é que alguns gramáticos dizem que a forma com o gerúndio éprolixa e, portanto, desnecessária. Eles recomendam o uso da forma “simples” argumentandoque é mais “enxuta”. Sobre o gerúndio e “gerundismo”
sexta seção, especulo se o uso gerúndio deve ser considerado um erro e per-gunto o que é um erro realmente. Na sétima, teço comentários sobre a crençapor parte de muitos usuários de que a ocorrência do gerúndio se deve à influên-cia da língua inglesa em contato com o português. Na última parte do trabalho,apresento algumas conclusões que decorrem da análise. 1. O gerúndio é parte integral do sistema gramatical do português: “o gênio da nossa língua” (Bechara, 2000:232).
Os gramáticos tradicionais preferem em geral prestigiar, nas suas descri-
ções tradicionais, bastante detalhadas, os tempos simples e os compostos, to-dos acompanhados de diferentes quadros com as respectivas conjugações nosmodos indicativo, subjuntivo e imperativo Cunha (1970:182-187). Muito menosatenção, todavia, é dada à ocorrência dos verbos auxiliares estar, ir, vir e andar. O gramático mostra exemplos desses auxiliares, que precedem verbos princi-pais em –NDO, mas limita sua apresentação à ocorrência dos mesmos nopresente do indicativo e no pretérito imperfeito, sem informar a possibilidade deocorrência em outros tempos. Alguns exemplos retirados de Cunha (1970:182-183):
“Venho tratando desse assunto.”“Estou estudando.”“O navio ia encostando no cais (pouco a pouco).”“Vinha rompendo a madrugada”“Andava procurando um livro”
Cunha explica, com toda propriedade, que as estruturas com os referidos
auxiliares seguidos de verbos principais em –NDO indicam “ação durativa”, “açãoque se desenvolve gradualmente” e “ação que se realiza progressivamente”.5
Quem apresenta uma descrição bem mais completa do gerúndio e o fenô-
meno da perífrase verbal é Mattoso Câmara (1972:146-147) que observa queem português o auxiliar ocorre numa variedade de tempos e modos:
Cunha (1970:183) observa que “na língua moderna de Portugal predomina a construção desentido idêntico, formada de estar (ou andar+ preposição a + infinitivo). A afirmação estácorreta, mas pode levar usuários incautos a pensar que o gerúndio com V+ estar+____NDOnão ocorre no português de Portugal. Não é verdade. Seria interessante examinar porqueSaramago usa, em certos momentos, estar+ a e em outros, construções “plenas”com V+estar___NDO. “Sara ouve o que lhe está dizendo a doutora Maria Sara”, José Saramago,História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 167.
“Estou espalhando”, “Estava espalhando”, “Estive espalhando”, “Estivera espa-lhando”, “Estarei espalhando”, “Estaria espalhando”, “esteja espalhando”, “esti-vesse espalhando”, “estiver espalhando”, “estando espalhado”,6 “estar espa-lhando”.
Castilho (1961;113) resume sucintamente o papel o quadro de aspecto
verbal em língua portuguesa nestes termos:
. observemos ainda que no setor das perífrases a noção que apresenta maiorriqueza de possibilidades de expressão é a de duração, e que de todas a maisversátil é a perífrase com estar (a) + infinitivo/gerúndio/particípio passado, indi-cando ação inceptiva cursiva propriamente dita e cursiva progressiva, resultativae cessativa.
A reflexão acima apresentada mostra que o português é rico em gerúndios.7Nem sempre os dados de Mattoso são aproveitados pelos gramáticos.
Um resultado sério dessa omissão é o fato de que alguns falantes de portuguêsacreditam que o sistema verbal do português se restringe aos tempos presente(louvo), pretérito imperfeito (louvava), pretérito perfeito (louvei) e limitadamenteno futuro simples (louvarei).
Com base nos trabalhos de Coseriu8 e de Jakobson, Bechara (2000:212 se
refere a “certas espécies de ação e arrola diferentes visões ou fases” de ver-bos em português:
(i) “o verbo ir+ gerúndio: venho fazendo é uma ação progressiva e apre-
(ii) “o verbo continuar+ gerúndio: continuo (sigo) fazendo combina a visão
Bechara observa com muita lucidez a própria especificidade da língua, o
que diz por meio da expressão “o gênio de nossa língua” ao escrever:
Entre os exemplos arrolados por Mattoso Câmara, “Estando espalhado” é verdade que overbo principal não está no gerúndio. Mesmo assim, o gerúndio em si em português é muitoprodutivo em comparação com o francês, holandês ou alemão. Devo a observação a RenatoMiguel Basso.
Existem gerúndios perifrásticos no português contemporâneo como: Maria está/esteve/esta-rá/estariatrabalhando e o não perifrástico que têm a forma composta: Não tendo conseguidodormir, fui escaldar um chá na cozinha e dei de cara com a Rosa e a Idalina. (Otto LaraResende) e a forma simples: “Cai a chuva estrepitando.”(F. Varela). Para mais dados, ver CelsoCunha, Gramática Moderna. Belo Horizonte:Editora Bernardo Alves, 1970, pgs. 182-183.
Um dos livros citados por Bechara de autoria de Coseriu é El Sistema Verbal Románico. México:Siglo Veiteuno, 1996. Sobre o gerúndio e “gerundismo”
Está mais de acordo com o gênio da língua portuguesa (ênfase minha) o uso dogerúndio com auxiliar estar ou infinitivo com a para traduzir atos que se realizampaulatinamente, em vez do uso de forma simples do verbo, como faz o francês(Jeanne nous regarde / Joana está-nos olhando ou a nos olhar (p. 232)).
Cabe observar que o gerúndio é de longa data usado no português e muito
freqüente nas Cantigas de Santa Maria de Alfonso X (Mettmann: 1986). Umexemplo:
“Chorando de coraçon foi-sse correndo a casa, e viu enton estar fazendo os bischocos e obrar na touca a perfia, e começou a chorar con mui grand’alegria.” (Cantigas de Santa Maria, 18)
(a) O gerúndio em português e em outras línguas.
O português se diferencia de outros idiomas do mundo devido à falta de
gerúndios perifrásticos como em línguas tais como o alemão, o holandês, ofrancês e o russo.9
Os referidos idiomas, em vez de utilizar verbos auxiliares e um afixo nos
moldes de –NDO ao verbo principal, recorrem ao presente do indicativo edependem muito mais da presença de adjuntos adverbiais de tempo (nestemomento) e advérbios (agora, freqüentemente) do que o português para ex-pressar duração e continuidade.
O sistema verbal do português apresenta várias formas de expressar
futuridade: (i) encaminharei o relatório amanhã”, (ii) “vou encaminhar o relató-rio amanhã”, (iii) estarei encaminhando o relatório amanhã”, (iv) vou estarencaminhando o relatório amanhã”. Cabe observar que em outros idiomas – ofrancês e o alemão são bons exemplos – não existe uma construção perifrásti-ca estar+ndo que tem a finalidade de exprimir continuidade ou “progressividade”.
O francês tem o “gerondif”: Ils vont chantant e En attendent le plaisir de vous rencontrer.,mas não uma forma perifrástica como être (estar)+ gerúndio.
O francês tem equivalentes para as sentenças (i) e (ii) acima, mas não para (iii)e (iv). O italiano, por sua vez, apresenta “traduções” para (i) e (ii) respectiva-mente “invierò la relazione domani” e “ínvio la relazione domani”; no sistemaverbal italiano não existem equivalentes para (iii) e (iv).
À guisa de exemplo, o falante do português pode dizer “Maria canta” e
também “Maria está cantando”. Existe em francês uma única possibilidade“Marie chante”, oração essa que comunica o que Marie sabe fazer e tambémo que ela está fazendo num determinado momento da fala. Para transmitircontinuidade, a língua francesa depende exclusivamente de advérbios ou ex-pressões adverbiais: “maintenant”, “dans ce moment” ou “être en train de+infinitivo”. Obviamente, uma oração isolada (fora de contexto) é ambígua.
Quanto ao português brasileiro, cabe observar que o próprio verbo estar
(com ou sem ser+NDO) precede adjetivos dinâmicos tais como: “Ele está (sendo)curioso, barulhento, intransigente, exibido, oferecido, fingido” Esses mesmosadjetivos também seguem o verbo de ligação ser: “Ele é curioso, barulhento,intransigente, exibido, oferecido, fingido etc.” Daí se pode concluir que o portu-guês de acordo com a figura abaixo possui um quadro verbal “diferenciado”em contraste com o inglês ou com o francês.
Ao comparar os três idiomas, usei o adjetivo “diferenciado” para caracte-
rizar o português com respeito a estar (sendo) e ser. O português brasileiro,neste caso, é diferente. Afirmar que ele é “mais expressivo” ou “rico” do que oinglês e o francês é um argumento tão subjetivo como alegar que a construção(ir)+estar+V____NDO não seja plenamente vernácula.” A língua portuguesase distingue dos outros idiomas do mundo e eis aqui a sua originalidade, pois elaé um dos poucos idiomas do mundo que admite o uso do gerúndio como impera-tivo.10
O português é diferente de outras línguas do mundo em utilizar o gerúndio em enunciadoscomo: Só rindo, Só vendo, só perguntando, Foi sem querer, querendo.Sobre o gerúndio e “gerundismo”
Cunha (1970: 282) observa que no português popular “. o gerúndio subs-
titui por vezes a forma imperativa”. Eis alguns exemplos retirados do livro deCunha:
Apresento dos meus registros outras estruturas em –NDO que funcio-
Gente, vão se acomodando!Tudo mundo votando!Vai entrando, Zeca!Vá falando, rapaz!Pode ir esquecendo! Não haverá aumento!“Vai saindo, vai saindo, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho.”Lygia Fagundes Telles, “Suicídio na Granja”, Invenção e Memória. Rio de Janeiro:Rocco, 2000, p. 18.
Os idiomas sem formas perifrásticas semelhantes ao auxiliar +
V____NDO (freqüente em português) não atestam construções desse tipo navoz passiva:
“Ele (= projeto de lei do deputado Aldo Rebelo) teria que estar sendo mais discu-tido.” [ Luis Fernando Veríssimo, Agência O Globo,Gazeta do Povo (Curitiba), 25de janeiro de 2001. “Toda vez que eu ligo a TV ou ele está sendo preso ou está sendo solto!” (JoséSimão, Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2004, p. E 7)“Os carnês estão sendo enviados.”“Os impostos estão sendo cobrados.”
Do mesmo modo, idiomas desprovidos de formas perifrásticas com verbo
auxiliar seguido de particípio não apresentam a referida forma no modo subjun-tivo (quando esses idiomas tiverem subjuntivo): “Duvido que ele esteja dizendoa verdade o tempo todo neste inquérito.”, “Duvido que ele vá estar dizendo averdade no decorrer do inquérito.”
(b) Uma hipótese a respeito do gerúndio e o sistema verbal do português:
A respeito do gerúndio no sistema verbal, apresento a seguinte hipótese.
Se o quadro verbal do português brasileiro não tivesse a variedade de formasperifrásticas (com a presença do gerúndio) que tem, os usuários não teriam
condições de chegar a produzir construções tais como ir + estar + V___ndo,dever + estar + V___ndo e poder + estar + V____ndo. Observem-se asdiferentes perífrases existentes no idioma que possibilitam o desenvolvimentode ainda outras perífrases no sistema.
Ele fica pesquisando a vida dos dinossauros.
vaivemseguecontinuavaidevepodeesperatem vontade de estar pesquisando a vida dos dinossauros. 2. O gerundismo: um problema lingüístico ou extralingüístico?
Cabe observar que o próprio termo “gerundismo” não está registrado no
momento presente no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) ouo Novo AurélioSéculo XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa (1999). Sem dúvida, a referida palavra virá a ser dicionarizado no futuro próximo. Comoseria definida pelos lexicógrafos? Afianço que possíveis acepções seriam: (i)“o uso exagerado de gerúndios” ou (ii) “o emprego do gerúndio em oraçõesiniciadas com o verbo ir seguido do auxiliar estar + V___NDO como em vouestar enviando, vou estar transferindo, vou estar entrando”.11
Enunciados como “Ele deve estar chegando na parte da tarde” ou “Boa coisa não há de estarfazendo” (Cf.ACilada de autoria de Otto Lara Resende, (In:Ênio Silveira, org. Os SetePecadosCapitais. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964) nem sempre são alvos de crítica,vistos como “pragas”ou “vícios”como no caso de enunciados que começam com o verbo ir(ir+ estar+ V___NDO). Sobre o gerúndio e “gerundismo”
Não me parecem procedentes as definições propostas. Em primeiro lu-
gar, a noção de exagero na linguagem é um assunto pessoal e depende do estilooral (e escrito) dos usuários. Exagerar ou não é um direito e da responsabilida-de do usuário. Alguns falantes “exageram” no uso de gíria, outros no empregode palavrões e ainda outros no “excesso” de marcadores conversacionais como“tá?”, “né?”, “viu?”, “sabe?” e “entende?”. Ainda outros exageram no uso devocábulos de origem estrangeira que têm equivalentes em português. Os quecondenam o uso de estruturas V+ estar + V___NDO recorrem igualmente aoexagero como uma estratégia para censurar o emprego da referida constru-ção. Eis um exemplo de texto confeccionado para ridicularizar o uso excessivodo gerúndio.
Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando, estarimprimindo e estar fazendo diversas cópias, para estar deixando discretamentesobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essapraga terrível que parece estar se disseminando na comunicação moderna, ogerundismo. (Manifesto antigerundista).
Para combater o exagero cometido por parte de um número reduzido de
falantes, os “adversários” montam propositalmente textos artificiais que nãoocorrem naturalmente na linguagem, com a finalidade de persuadir os usuáriosa evitar a referida estrutura. A mesma estratégia tem sido usada também pararidicularizar o uso de gíria, o emprego de estrangeirismos e, até, o dialeto caipi-ra, é triste dizer.
Nem mesmo os indivíduos que trabalham no telemarketing, que recebem
críticas por “abusar” do gerúndio, usam tantas formas no gerúndio nas suasinterações com o público. É fácil para autores construírem textos para desqua-lificar uma determinada prática lingüística, mas eles não apresentam um argu-mento realmente acadêmico para rejeitar determinadas ocorrências do gerúndio.
É verdade que alguns falantes podem chegar a empregar freqüentemente
a forma em tela nas suas interações. Os que trabalham na área de telemarketingtêm sido alvo de crítica, pois alguns receptores das mensagens telefônicas in-terpretam estruturas como vou estartransferindo, vamos estar enviandocomo falta de boa vontade, insinceridade ou mera protelação. Uma falanteconfessa a sua impaciência com estar transferindo: “Confesso que de sacocheio de ouvir “vou estar passando sua ligação para o outro setor.” Mas, amesma falante defende o uso de “vou estar enviando o meu trabalho na próxi-ma semana” por uma determinada usuária porque “. é possível que ela não
saiba exatamente quando, no decorrer da próxima semana, que ela vai poderenviar.”12 O referido enunciado não ocorreu num ambiente de telemarketingmas num ambiente universitário. Daí se vê que “vou estar+V____NDO” podeser recebido diferentemente por dois ou mais usuários. Generalizar com baseem uma opinião é sempre perigoso. A linguagem é plural e não é propriedadede um indivíduo só. Vou estar pode ser recebido por parte de um determinado ouvinte como
exemplo de má-vontade em realizar a ação logo. A causa da irritação pode sermuito mais a própria situação em que a linguagem é usada. Teclar no telefonenúmero 1 para “alhos” e 2 para “bugalhos” e assim número 8 !! para finalmenteouvir uma gravação que diz: “Obrigado, você vai estar recebendo um telefone-ma de um de nossos representantes”, contribuiria, sem dúvida, para a perda depaciência por parte de uma pessoa até bem equilibrada. O problema é nemsempre lingüístico. Em uma situação em que o lapso de tempo necessário paraque uma ação de enviar ou transferir algo, um documento por fax, por exem-plo, depende da própria eficiência do serviço prestado: as linhas telefônicas sãolentas? A rede vive fora do ar ou está lenta? É provável que alguns usuários quetrabalhem diretamente com a Internet e aparelhos de fax estejam acostumadosàs demoras nas tentativas de “enviar” e “transferir” devido ao tamanho dosarquivos, mas outros ficam irritados e impacientes com a demora. Os que de-pendem de serviços de entrega em domicílio estão cientes da morosidade dotráfego nas ruas e avenidas congestionadas: o enviar e o transmitir se tornam(para eles) ações de duração e não atividades pontuais. Ainda, outras situações:o funcionário ou a funcionária está dando conta do grande número de chama-das? A fila não anda? Os funcionários estão revoltados devido a problemastrabalhistas ou de ordem pessoal? A língua e a linguagem são fenômenos sociaise os acontecimentos no dia-a-dia dos seres humanos afetam a linguagem que elesutilizam. Cabe lembrar que mesmo sem usar nenhum gerúndio, um(a) telefonis-ta pode ocasionar irritação quando deixar um indivíduo esperando muito tempopara ser atendido. O problema pode ficar em certas instâncias fora da próprialinguagem, pois filas intermináveis em repartições ou em bancos também irri-tam mesmo quando não ocorrerem gerúndios na interação entre indivíduos.
É importante também não adotar uma postura preconceituosa contra gru-
pos de pessoas que trabalham no campo de telemarketing que atribuem à
Os meus agradecimentos a todos os colegas e também aos informantes “leigos” que debateramcomigo a respeito do gerúndio. Não menciono nomes específicos, pois a consulta por minhaparte foi realizada informalmente por correio eletrônico. Julgo que não seria ético indicarnomes, pois muitos dos consultados disseram que gostariam de refletir mais sobre o assunto. Sobre o gerúndio e “gerundismo”
estrutura perifrástica ir + estar + V___NDO uma forma de mostrar interessee preocupação para com o público.13
3. V+ estar+V____NDO: um fenômeno novo?
Certos falantes acreditam que a estrutura em tela é de origem recente.14
Alguns gramáticos e alguns jornalistas tentam legitimar essa visão. Uma con-sulta a fontes escritas, mesmo parciais, desmente a crença. Os exemplos reti-rados do romance Os Ratos de Dyonélio Machado, publicado pela primeira vezem 1935 e republicado em 2004 mostra que a referida estrutura não é recente:(i)
“Agora mesmo, toda essa manhã perdida em busca de uma e outra pes-soa, quando podia estar agenciando, cavando. (p. 44)
“O datilógrafo há de estar lendo o livro metido na gaveta” (p. 46)
(iii) “Todo o bangalô parece estar vibrando – enorme caixa de música.” (p. 58)
A estrutura também pode ser encontrada em autores mais recentes. Na
coletânea de contos Invenção e Memória de autoria de Lygia Fagundes Telleshá as seguintes ocorrências:
Numa das páginas na Internet que ataca o uso do gerúndio, os autores do site consideram ogrupo de indivíduos que trabalham no campo de telemarketing como sendo um “gueto”. Lamentável é o uso da referida palavras que lembra a exclusão social de milhares de judeus naAlemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Considerando que um bom número de pessoas que trabalham na área de telemarketing sãomulheres, pergunto se não poderia haver certa dose de discriminação contra elas. Recentemen-te, na programação de uma novela televisa, uma alta executiva de uma empresa humilhou umasecretária por ela ter usado ir+estar+V___NDO. Mais um exemplo do uso da língua (e alinguagem) como instrumento de poder e autoridade. Existe uma dose de “terrorismo” emcertas atitudes sobre a linguagem,
Infelizmente, afirmei em trabalho anterior (Schmitz, 2004) que a construção ir (poder, dever,ficar) é recente no idioma. Com base nos exemplos encontrados nas obras de D. Machado,Telles e Resende, retiro a afirmação. Os enunciados retirados de D. Machado mostram que aconstrução em tela data de 1935, mais de 70 anos atrás. Cabe observar que não encontreienunciados com ir+estar+V___NDO nos referidos textos. É possível que essa forma sejarealmente mais recente e restrita a textos orais informais. Seria interessante saber exatamentequando ingressaram no idioma pela primeira vez construções como poder+estar+V___NDO,dever+estar+V___NDO, e haver de+estar+V____NDO. Não encontrei exemplos de ir(po-der, dever, haver de+ V___NDO no corpus das obras de Maria Helena de Moura Neves,Gramáticos de Usos do Português. São Paulo: Editora Unesp, 2000 e também de OdetteGonçalves Luiza Altmann de Souza Campos. O Gerúndio em Português. Rio de Janeiro:Presença, 1980.
(iv) “Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviado, mas ele de-
via estar sabendo, eu não precisava mais falar” ( p. 93) Lygia FagundesTelles, Invenção e Memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
No conto “A Cilada” de autoria de Otto Lara Resende (In:Ênio Silveira,
org. Os SetePecados Capitais. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,1964) há dois exemplos:(v) “Boa coisa não há de estar fazendo”, (p. 71)(vi) “O negro deve estar dormindo”, (p. 77)
Observa-se que todos os enunciados respectivamente retirados dos tex-
tos de Machado, Telles e Resende têm o auxiliar estar posicionado entre overbo inicial (à esquerda) poder (i), haver de (ii), (v), parecer (iii) , dever (iv),(vi) e (à direita) os respectivos verbos principais em –NDO: agenciando, cavan-do (i), lendo (ii), vibrando (iii), sabendo (iv), fazendo (v) e dormindo (vi).
Possenti (2005: 21), em vez de considerar orações “vou estar morando
em S. Paulo” exemplos de gerundismo, prefere rotular as mesmas como casosde “estarismo”. Exemplos retirados dos três autores acima citados (i) a (vi)também seriam exemplos. O sistema verbal do português é muito rico e bas-tante complexo. No corpus consultado há exemplos de outros auxiliares queocorrem entre o verbo inicial e o verbo principal com o sufixo em –NDO:(vii) “Pode ir tirando o cavalo da chuva”. (p. 53), “A Cilada”, Otto Lara Resende.
(In: Ênio Silveira, org. Os SetePecados Capitais. Rio de Janeiro: EditoraCivilização Brasileira, 1964)
(viii) “Enfim, até quando eu teria que ficar justificando o que escrevi”, (p.77),
Lygia Fagundes Telles. “Que número faz favor?” Invenção e Memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 73.
Existem também exemplos de “estarismo” fora da área de literatura. Eis
alguns exemplos de textos jornalísticos:
“Mas deve estar sendo comemorado pelos responsáveis.” Editorial, Folha de S. Paulo, “Objetivo Duvidoso”, 27 de outubro de 2004, p. A2.
“.uma vez a sempre preferível estratégia de auto-regulamento parece estar fa-lhando”, Editorial, Folha de S. Paulo, 06 de junho de 2005, p. 2.
“Muitos devem estar pensando que esse é uma questão de Estado e de políticapública”, Milú Villela, “O Tsunami Nosso de Cada Dia”, Folha de S. Paulo, 03 defevereiro de 2005, “Tendências e Debates”, p. A 3. Sobre o gerúndio e “gerundismo”4. Duração (Continuidade), Pontualidade (Finalidade): Incompatibilidade: Próprio dos Verbos ou do Mundo Real?
O problema maior com respeito à análise de ir+estar +V____NDO é o
fato de que os exemplos apresentados na literatura especializada e também nostextos publicados na imprensa carecerem de contextualização, pois os enuncia-dos não estão inseridos em discursos reais. Com respeito aos enunciados “vouestar enviando”, “vou estar providenciando”, “vou estar enviando” e “vou estartransferindo $ R 3.000, 00 de sua conta” realmente não existem pistas para umjulgamento lingüístico mais cuidadoso por parte de diferentes usuários com vis-tas à aceitação ou não dos mesmos.
O último exemplo “vou estar transferindo $ 200,00 .” não fornece con-
texto suficiente para processamento por parte de usuários do idioma. Talvezpor este motivo, alguns usuários rejeitem o enunciado. Todavia, se o referidoenunciado for “melhorado” com a presença de mais informação para possívelprocessamento, parece-me que os mesmos falantes seriam levados a aceitar anova versão: “vou estar transferindo mensalmente da minha conta quantias de$ R 3.000.00 para a minha poupança”. Trata-se da transferência de váriasparcelas mensalmente ao longo de um espaço tempo prolongado que indicaação durativa que vai além do momento atual. Um dado que me leva a argu-mentar que o julgamento gramatical de determinados enunciados é bastantecomplexo advém do fato de que Garcia (2002), mesmo rejeitando “Vou estartransferindo de sua conta $ R 3.000,00.” está plenamente consciente de queexiste outra leitura para o enunciado por ele rejeitado. As palavras do comen-tarista são reveladoras:
Se você ficar transferindo 3 mil reais da minha conta corrente durante o dia 23. Vaizerar a conta. Só transfira uma vez, não fique transferindo.
Possenti (2005: 11) afirma que o verbo enviar não é durativo e portanto
incompatível com o verbo auxiliar estar que tem sentido durativo. Com basenesta consideração, o autor afirma que o enunciado “vou estar enviando o seucartão” é “estranho” ao passo que o enunciado “vou estar morando em S. Paulo” está bem formado devido ao fato de estar e o verbo principal em -NDOserem durativos. Posso contra-argumentar que a noção de duração não é umtraço inerente dos verbos. Somente quando eles são empregados em eventuaistempos verbais seria possível cientificar se um determinado verbo for durativoou não.
Pormenorizando, o verbo enviar, por um lado, aporta o sentido não durativo,
pontual, não-contínuo quando utilizado no tempo pretérito perfeito como se ob-serva em: “Enviei o telegrama ontem.” Por outro lado, o mesmo verbo usadono tempo pretérito imperfeito como no exemplo: “Sempre enviávamos ao longodos anos fotografias dos netos a nossos avós” indica que a ação de enviaracarreta continuidade e atividade habitual ou repetida por um determinado es-paço de tempo. O enviar das fotografias tem certa duração.
Do mesmo modo, o sentido de continuidade é também transmitido quando
o referido verbo enviar ocorrer no tempo presente na forma perifrástica: “Ca-ros avós: estamos enviando, por correio registrado, as fotografias dos netos. Avise-nos quando chegarem”.
Com base nesses dados, afirmo que a presença da noção de duração e de
não duração somente pode ser verificada quando os verbos ocorrerem emdeterminados textos verbais conforme acima apresentados.
A noção de duração é bastante relativa, pois um intervalo de cinco minu-
tos pode ser uma eternidade para alguns; para outros, cinco horas dedicadas àrevisão de um artigo pode passar num instante. Para evitar conflitos sobre oque é duração, é preciso fornecer dados lingüísticos suficientes sobre os refe-ridos enunciados para que seja possível aos eventuais usuários refletir sobre oassunto e, assim, possam aceitar ou rejeitar o uso do gerúndio em certos con-textos. Quando se contrapõem duas ações simultâneas, os enunciados resul-tantes tendem a se tornar processáveis para os informantes. Um exemplo des-te tipo de enunciado é: “Vou estar providenciando a documentação na repartiçãolá no vigésimo nono andar enquanto você fica na fila aqui embaixo.” Da mes-ma forma, quando os enunciados com o gerúndio tiverem informação que per-mita determinar a existência de um espaço de tempo para a realização da ação,os mesmos se tornam interpretáveis para os usuários consultados: “Ele vaiestar resolvendo o problema dele nas próximas semanas” e “Ele vai estar en-viando os relatórios logo que tiveram os dados em mãos”.
Há, todavia, certas restrições ligadas mais ao funcionamento do mundo
real do que a restrições lingüísticas. Cipro Neto (1998a) tem razão ao questio-nar a aceitabilidade de comparecer no enunciado: “Não pude estar compare-cendo”. A atividade de comparecer é, de fato, difícil de repetir ou de ser repe-tido. Os verbos sumir e desaparecer são outros exemplos. Todavia, o usuáriopode pensar nas várias ocasiões em que participa de diversos eventos e consi-dera o verbo comparecer um sinônimo de participar. Diria que ninguém re-clamaria dos enunciados em que comparecer e desaparecer acarretam a noçãode duração ou continuidade. Dois exemplos: “Os artistas estão comparecendo
Sobre o gerúndio e “gerundismo”
regularmente às festas de aniversário e de casamento sem mencionar as fre-qüentes baladas que têm por aí.”; “Os sabiás já estão desaparecendo das nos-sas florestas”. 5. Umas reflexões interessantes sobre o gerundismo: falta de comprometimento? Atenuação de assertividade? Determinação histórica? Concisão? a) Escala de comprometimento?
Possenti (2005:21) afirma que entre os enunciados que os falantes de
português podem escolher para comunicar as suas intenções existe uma escalade compromissos que vai de um comprometimento máximo até um comprome-timento mínimo. Para o autor, “vou estar resolvendo” implica um compromissomínimo, “vou resolver seu problema” implica um comprometimento relativo ,“resolverei seu problema” , “compromisso forte, mas não tanto” e “hei de re-solver o seu problema” um compromisso máximo. A tese é interessante mas édifícil afirmar que há graus de compromisso inerentemente alojados nas referi-das orações. Um problema com a proposta é que nem todos os falantes usamo futuro “resolverei seu problema”, preferindo “vou resolver o seu problema”. O exemplo de grau máximo de compromisso “Hei de resolver o seu problema”é restrito a usuários mais letrados e nem sempre ocorre na língua falada infor-mal. Ausente da escala de comprometimento de Possenti (2005) é o enunciado“estamos resolvendo o seu problema”. Onde ficaria na referida escala? Osquatro enunciados citados podem ser utilizados por uma miríade de usuários. Quem poderia adivinhar o que todos esses usuários pensam no momento defalar? Quais são as intenções de todos eles? Se um determinado falante optarpor dizer, “vou pagar” ou “pagarei”, nada garante que o indivíduo cumpra coma palavra. Daí se vê que mesmo não fazendo uso do gerúndio, o falante podefalhar e não pagar. Não se pode afirmar que quem diz “vou estar resolvendo”,é necessariamente um caso de compromisso mínimo. Pode ser que o falanteprecise de certo tempo para cumprir. Não se sabem as verdadeiras intençõesde todos os falantes que poderiam lançar mão da referida frase. Existe, emmuitos casos, uma grande diferença entre o que é dito por um determinadousuário e o que ele faz na realidade. Com respeito aos indivíduos que dizem“hei de resolver o seu problema”, o exemplo mais alto de comprometimento naescala proposta por Possenti, realmente não temos nenhuma garantia a respei-
to da sinceridade dos eventuais enunciadores. Um determinado falante podeescolher, em diferentes instâncias, os quatro enunciados da escala na suas inte-rações com quatro diferentes ouvintes e mentir para todos sem ter nenhumaintenção de resolver nada. Para Searle e Vanderveker (1998:22-23), todos osatos de fala que envolvem “. uma mentira ou uma promessa insincera” sãoatos ilocucionários defeituosos.
A tese de que o uso do gerúndio “vou estar resolvendo” espelha uma falta
de compromisso reinante na sociedade brasileira é questionável quando se le-var em consideração que outros idiomas também têm um sistema de aspectosverbais repleto de gerúndios (como o inglês e o espanhol, por exemplo), masninguém concluiria que nas várias sociedades onde o inglês e o espanhol sãorespectivamente falados que, existe uma “crise” de comprometimento. Podeexistir, sim, falta de comprometimento e de ética nas diferentes sociedades,mas a “culpa” desse estado de coisas não é do gerúndio. b) Atenuação de assertividade?
Alguns usuários consideram que a presença do verbo “estar” em vouestarrecebendo torna o enunciado prolixo e o certo seria “vou receber”. Alémdisso, o verbo “estar”, de acordo com este ponto de vista, contribui para desfi-gurar a assertividade do mesmo. Mas, tanto “vou estar recebendo” como “voureceber” são asserções; é impossível afirmar qual enunciado teria um graumaior de assertividade. No meu entender, toda oração realmente assevera:“Prometo cuidar de você”, “Vou cuidar de você”, “Vou estar cuidando de você”e “cuidarei de você”. Um usuário consultado opina nestes termos: “Eu, pes-soalmente, não acho uma construção errada no português do Brasil. Pensoainda que é uma construção que carrega um certo valor de atenuação, isto é,parece-me que os falantes preferem essa construção como uma forma de po-lidez. Dizer “vou estar enviando” parece ser mais “polido” do que “enviarei”que soa mais direto. Isso são elucubrações, mas me parece que isso aconte-ce.” Não há nada inerente no enunciado “vou estar atendendo” em contrastecom “vou atender” que determine que o primeiro é mais polido do que o segun-do. Cada usuário recebe o idioma de forma diferente; alguns atribuem um graude polidez a uma oração e outros usuários não.
Há, todavia, outras opiniões. Costa (2005) afirma que o gerúndio “. si-
mula a formalidade e evita compromissos com a palavra e joga luz sobre oartificialismo nas relações sociais. O jornalista é categórico ao dizer que a refe-rida construção é um vício. Seria um vício, pergunto, se uma pessoa empregar
Sobre o gerúndio e “gerundismo”
um único gerúndio (do tipo que mais inquieta os críticos, ir+estar+V____NDO)numa palestra de duas horas de duração? As relações sociais podem, na verda-de, ser artificiais, pois a naturalidade ou a artificialidade no relacionamentohumano nada tem a ver com a sintaxe ou a semântica de um determinadoidioma. A artificialidade nas relações humanas pode ocorrer em qualquer gru-po, comunidade, sociedade ou país. c) Determinação histórica
Fora da área dos estudos da linguagem e especificamente na de história
existe outra análise do gerúndio que julgo pertinente para comentário nestareflexão. O filósofo Renato Janine Ribeiro (2000) apresenta uma tese enge-nhosa a respeito do surgimento do que ele chama o “gerúndio despropositado”. Ele argumenta que os brasileiros nunca ajustaram “. contas com o escravidão,com a colônia, com a iniqüidade” (p. 97) e descartam “o passado inteiro”. Segundo o filósofo, o brasileiro vive a ilusão de eterno recomeço. Por estemotivo, eles precisam “. do presente contínuo a torto e a direito: porque faltampassado e futuro” (p. 98). Afirmar que o sistema verbal do português brasileiroespelha os diferentes acontecimentos históricos e que o uso lingüístico dos fa-lantes reflete o passado histórico é uma postura determinista sem apoio nadisciplina de lingüística. Como disse acima, o inglês e também o espanhol têmnos respectivos sistemas verbais uma pletora de construções perifrásticas como gerúndio, mas as suas respectivas histórias são completamente diferentes. Os acontecimentos políticos-históricos-sociais de determinados países nada têma ver com a presença ou ausência de fenômenos lingüísticos como a voz passi-va, presença ou ausência do subjuntivo ou dois verbos de ligação: ser e estar. d) Concisão
Não somente a construção com gerúndio ir+estar+ V____NDO “Ama-
nhã, vou estar conversando com ele” mas também a construção “Amanhã,estarei conversando com ele” são considerados “pouco econômicas à expres-são do sentido pretendido” por parte de Camargo (2000). A autora recomenda“Amanhã conversarei (vou conversar) com ele”. Qual será o “sentido preten-dido” a que se refere a autora? O perigo com a recomendação é que eventuaisvestibulandos podem inferir que o futuro perifrástico “Estarei conversando”não é exemplo de português correto. Pior ainda é condenar “conversarei” nacrença de que o futuro não é usado em português do Brasil como afirma Cipro
Neto (1998b):”Não temos o hábito de dizer “faremos”, dizemos mesmo “Va-mos fazer”. Uma usuária questionada a respeito do gerúndio reclama nestestermos: “Ficamos cansados de ouvir tantas construções com o gerúndio que,em verdade, pouco acrescentam àquilo que efetivamente as pessoas queremdizer”. Os comentários por parte da usuária mostram certa irritação com oexagero e a repetição. Mas, em se tratando de tantos falantes e tantos inter-câmbios entre diversas pessoas, pergunto se em todas as instâncias pensadaspela usuária ocorreram malentendidos como se fosse caso de duas línguasestrangeiras diferentes.
O desejo de buscar concisão pode, em certos casos, ter resultados trági-
cos. Por exemplo, num folheto de orientação de trânsito, a Secretaria de Trans-portes da Cidade de São Paulo informa: “Cuidado: mesmo que os automóveisestejam parados, os ônibus, motos e táxis podem estar andando na faixa exclu-siva. Se o “estar andando” for substituído por “podem andar”, o significadoseria outro e diferente da intenção da Secretaria de Transportes.15
6. O uso do gerúndio é um erro?
As línguas mudam ao longo do tempo e cada geração deixa a sua marca
mesmo pequena no idioma. O português escrito e falado da época de José deAlencar ou Aluísio de Azevedo é diferente da língua produzida pelos usuárioshoje em dia. Estigmatizar determinadas construções e expressões não prestaum bom serviço ao idioma. Não incluiria (ir)+estar+ V____NDO entre várias“impropriedades” cometidas por alguns usuários tais como (i) grafar “tampou-co” quando a intenção é dizer “tão pouco”, (ii) escrever “a par” quando ocontexto pede outra forma como no caso: “As ações do Petrobrás estão aopar” (e não “a par”), (iii) escrever “ir de encontro a” quando a situação pede “irao encontro de”. Essas produções de fato são problemáticas, pois desviam aatenção do ouvinte/ leitor e dificultam a comunicação. O que falta na análisegramatical, a meu ver, é uma discussão sobre a gravidade dos erros. Seriaimportante pensar numa hierarquia de “erros” começando com os que interfe-rem na compreensão e indo até as “infrações” que não dificultam a recepçãoda mensagem, mas esse assunto seria tema para outro trabalho. Devido à polêmi-
Os que argumentam que o gerúndio é prolixo nem sempre sabem que, em certos casos, opresente indicativo e a forma perifrástica estar+NDO funcionam como variantes estilísticos,pois os usuários de português podem escolher: “Envio neste momento um e-mail com doisanexos”/ “Estou enviando neste momento um e-mail com dois anexos”. Sobre o gerúndio e “gerundismo”
ca com respeito ao gerúndio, muitos indivíduos se confundem. Existe perigo decorrigir uma construção onde não há nenhum problema. O cronista Millôr Fer-nandes (2006) ironiza a corrente dos antigerundistas com seu característicobom humor: “Devem continuar procurando (a procurar corrijo), aceitando oatual lingüisticamente correto, que odeia o gerúndio”.
Dizer categoricamente que a forma ir+ estar+ V___NDO é um erro
reflete uma postura simplista com respeito ao idioma, pois critérios diferentessão arrolados e misturados para identificar o que supostamente está errado. Para Sanchotene (2006) a frase “Vou estar transmitindo sua queixa ao gerente”deve ser substituída por “Vou transmitir sua queixa ao gerente” devido ao fatode que a primeira expressa “possível submissão, respeito à hierarquia” ao passoque segunda é por ele considerada “forma aceitável, mesmo quando o interlo-cutor não tem poder de decisão.” Estar em posição de superioridade numahierarquia decisória nada tem a ver com a escolha de “vou estar transmitindo”ou “vou transmitir”. É também subjetivo considerar uma forma ou outra maispolida. Para medir o grau de polidez, é preciso conhecer o contexto inteiro,identificar o papel dos interlocutores e o tom de voz de cada um dos participantes.
Um “erro” como no caso da forma verbal “se eu depor” em vez do certo
“se eu depuser” (Cipro Neto, 2000) é um caso muito diferente do que ocorrecom o gerúndio “ir+estar+V___NDO”. O primeiro exemplo no uso do verbodepor indica falta de leitura e estudo. O segundo exemplo reflete o pleno fun-cionamento do idioma. Um problema com respeito a noção de erro é a existên-cia de uma postura de discriminação contra indivíduos que não tiveram a opor-tunidade de estudar. Humilhar pessoas e considerá-las “ignorantes” por nãoconhecerem determinadas formas de português pode esconder outros precon-ceitos de ordem de classe social, raça e etnia. No entanto, cumpre perguntaronde pára o preconceito lingüístico com respeito a indivíduos que nunca tive-ram ensino formal e começa uma verdadeira impaciência com um certo desca-so com o idioma. Não se trata de preconceito lingüístico16 por parte de LimaBarreto autor da crônica “Quase Doutor” (1915), ao relatar o caso de umestudante, que mesmo em vias de concluir os seus estudos, continua falandouma variedade de português popular. Barreto comenta: “Caí das nuvens. Estehomem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tãofirmes conhecimentos!” (p. 141).
Um estudo pormenorizado, muito sério e comovente sobre o preconceito lingüístico é o livrode autoria de Maria Marta Pereira Schere, Doa-se lindos filhotes de poodle. São Paulo, Pará-bola, 2005. 7. O gerúndio: influência do inglês?
Alguns críticos alegam que a referida construção verbal seria resultado
do contato ou da interferência com a língua inglesa por parte dos falantes brasi-leiros. Não estou convencido de que orações como “Vamos estar aplicandoainda outra vacina amanhã” [atribuída ao Sr. José Serra, Ex-Ministro da Saú-de], “Vou estar pensando o tempo todo na minha namorada durante a minhaviagem à França”, “O plantonista vai estar atendendo amanhã na parte datarde” e “Você vai estar chegando de viagem quando a gente começa a abririnscrições” sejam frutos da interferência por parte de aprendizes brasileiros delíngua inglesa. Acredito que nem todos os falantes que produziram essas ora-ções falam a referida língua. É bem provável também que alguns desses falan-tes nunca tenham estudado a língua inglesa. É mero acidente ou coincidênciaque o inglês e o português recorram à mesma construção: V+estar+V____NDO/ V+ be+V____ING. É verdade que o português compartilha com oinglês, em certos casos, orações como “Vou estar enviando um fax esta ma-nhã/ Estarei enviando um fax esta manhã” e “I am going to be sending you afax this morning/ I will be sending you a fax this morning”. A existência dasreferidas construções respectivamente nas duas línguas se deve a um desen-volvimento diacrônico independente.
Quem conhece a literatura especializada sobre a aquisição de inglês por
parte de brasileiros sabe que os desvios ou “erros” realmente produzidos pelosaprendizes são outros. A direção da interferência não é do inglês para portu-guês, mas do próprio português para o inglês. Os que lidam com o ensino deinglês a brasileiros sabem que o aprendiz brasileiro precisa ser alertado que ouso de estar+V____ndo é, em certos casos, mais “livre” do que em inglês. Emportuguês, “Maria está sabendo as respostas” e “Mário está gostando das au-las de morfologia” são bem formadas, ao passo que as orações equivalentesem inglês nem sempre satisfazem: *“Mary is knowing the answers” e *“Mariois liking morphology”, pois, para certos falantes de inglês, a presença de locu-ções adverbiais de freqüência e de tempo contribui para a plena gramaticalidade:“Mary is knowing more and more the answers to the questions as the semestergoes by” e “Mario is liking morphology more and more every day thanks to hisinspired teacher”. Existe a possibilidade de o aluno brasileiro generalizar de-mais ao tentar se expressar em inglês e o resultado seriam enunciados nemsempre muito felizes: *“I am not liking this food” e *“It is wanting to rain”.
Há também casos em que o português emprega um gerúndio e o inglês
não. Os equivalentes de “Não estou entendendo, delegado”, “Não estou vendo
Sobre o gerúndio e “gerundismo”
a sua bengala” e “Ficarão sabendo em julho” em inglês são respectivamente: “Idon’t understand, inspector”, “I don’t see your cane” e “You will find out inJuly”. 17
8. Concluindo
a) Neste trabalho tentei mostrar que o português é uma das línguas do
mundo que apresenta uma variedade de construções perifrásticas com a pre-sença do verbo auxiliar estar (e vários outros): “Ele está, vem, vai, anda, viveestudando”. Bechara (2001:219-220) resume com propriedade a complexidadedo sistema verbal do português: “É o que ocorre com estive fazendo, queexpressa, além do nível do tempo e da perspectiva primária, também a visão. Tenho estado fazendo expressa nível temporal, perspectiva primária, pers-pectiva secundária e visão. Já tenho estado vindo fazendo, tinha-se estadopondo a fazer embora teoricamente possíveis, não são correntes.”
b) Comentei no decorrer do artigo que os próprios usuários do idioma
empregam a referida construção perifrástica com criatividade nos textos escri-tos e também orais. Alguns exemplos:
“Deu o que deu. Ou está dando no que está dando”, Eliane Cantanhêde, “Dor nocoração”, Folha de S. Paulo, 29 de fevereiro de 2004, p. A2.
“Falando de futebol estava, falando de futebol continuava”, Eliane Cantanhêde,“Hermanos”, Folha de S. Paulo. 05 de maio de 2005, p. A 2.
c) Argumentei nesta apresentação que dada a produtividade da constru-
ção estar+ V___NDO, é possível os usuários expressarem sutis diferenças detempo e de aspecto. Por exemplo, a construção com estar+V____NDO podese referir à ação costumeira: “Ele sempre está andando na praia” ou no mo-mento exato de falar: “Ele está andando na praia neste instante”, ou a ação queacontece no futuro: “Ele está viajando para França no próximo sábado” .
d) Com base nesses comentários e, em particular, levando a proposta de
Castilho (1967) que “a perífrase com estar é a mais versátil”, argumento que
A polêmica sobre o gerúndio infelizmente traz críticas à figura do tradutor. Alguns anti-gerundistas culpam ao tradutor brasileiro de língua inglesa pela presença do gerúndio emportuguês. É injusto generalizar e afirmar que todos os tradutores são incompetentes e que nãorespeitam a sua própria língua. Existe muita seriedade e profissionalismo por parte dostradutores e intérpretes brasileiros.
as construções com gerúndio precedido de ir + estar são reflexão de um de-senvolvimento natural no idioma. Se a língua portuguesa não possuísse o gerúndioperifrástico, em primeiro lugar, os falantes não poderiam, em segundo lugar,chegar a produzir a gama de construções que ocorrem no idioma e bastantearraigados de longa data no português (cf., D. Machado, 1935 (2005). Na rea-lidade a presença de gerúndio perifrástica serve como “ponte” para a ocorrên-cia de novas formas (ir+estar+V____NDO) e novos usos no sistema de as-pecto verbal da língua. Não deve ser uma surpresa atestar as referidas formasem português devido à presença das formas perifrásticas numa variedade detempos. Comentei no item (c) desta oitava parte que o gerúndio incorpora, emcertos casos, o papel de futuro: cf. “Ele está viajando para França no próximosábado”. O português se destaca de outros idiomas do mundo, como argumen-tei acima (seção 1 (a), em apresentar várias formas de expressar o futuro: (i)“encaminhei o relatório amanhã”, (iii) “vou encaminhar o relatório amanhã”,(iii) “estarei encaminhando o relatório amanhã”. Baseando-me nas observa-ções de Castilho (1967) a respeito da versatilidade da perífrase com estar etambém nas de Possenti (2005) a respeito de “estarismo” no português, aven-turo-me a propor que as construções em ir+estar + V____NDO funcionam,em certos casos, como um (novo) futuro no português do Brasil: (iv) “vou estarencaminhado o relatório amanhã”. Outra evidência que me leva a propor que aconstrução ir+ estar+ V___NDO expressa futuridade é a sua compatibilidadecom locuções adverbiais de tempo (voltadas ao futuro). Comparem, por exem-plo, os enunciados no tempo presente com os que, de acordo com a minhaargumentação, focalizam o futuro
Carlos está morando em São José do Rio Preto desde 1985.
Carlos vai estar morando em São José do Rio Preto nas próximas semanas.
Eles já estão resolvendo aos trancos e barrancos os problemas deles.
Eles vão estar resolvendo os problemas deles ao longo do próximo semestre.
Os enunciados com as construções “estar morando” e “estar morando”
onde se têm “estarismo” (Possenti, 2005) e V____NDO funcionam como re-curso para descrever continuidade no futuro que ainda não foi iniciada.
A “expansão” ir +V___ NDO ’‡ir+ estar+V___NDO no português bra-
sileiro contemporâneo também poderia ser considerada uma marca deixadapelos falantes mais novos, pois cada geração contribui para a mudança doidioma. Sobre o gerúndio e “gerundismo”
e) Tentei argumentar que é preciso repensar a noção de erro em portu-
guês porque as construções com gerúndio são, na verdade, sintática e seman-ticamente bem formadas. A polêmica em torno do gerúndio e “gerundismo”mostra que faltam entre nós, debates respeitosos e tranqüilos entre gramáticos,lingüísticas, professores de português, jornalistas, publicitários e advogados como público em geral com respeito a uma atualização ou “aggiornamento” danorma padrão. Tal debate é necessário para eliminar a defasagem entre o queé apregoado com base na “Tradição” e o que é realmente usado no dia-a-diapelos diferentes usuários do idioma, independentemente de sua classe social egrau de instrução.
f) Argumentei também que a presença do gerúndio em português não é
resultado da interferência de aprendizes brasileiros de língua inglesa e a pre-sença de gerúndio na língua portuguesa nada tem a ver com problemas detradução.18
Ciente de que o tema escolhido para a minha reflexão é polêmico, agrade-
ço a atenção dos meus leitores e aguardo comentários, sugestões e críticas. Referências bibliográficas
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