A configuração de um deslocamento: a prática da escrita de cartas em Capistrano de Abreu Fernando José Amed
FACOM /FAAP- Doutorando em História Social – FFLCH/USP
João Capistrano de Abreu (1853 – 1927), vem sendo costumeiramente
apontado pela historiografia, como um historiador que não justificou o vulto
de seu conhecimento, em uma obra escrita de tamanho e peso. O
aprofundamento na correspondência do intelectual, no entanto, sinaliza que
Capistrano de Abreu não se ajustou às práticas de pesquisa e divulgação de
conhecimento, oferecidas na virada do século XIX para o XX, em nosso país.
Nesse sentido, pelo uso que o historiador fazia da correspondência –
comparável em volume, com a obra publicada em vida por Capistrano -,
acreditamos que o intelectual tenha se sentido mais à vontade para declinar o
seu amplo conhecimento, de uma forma privada.
Abstract
João Capistrano de Abreu (1853-1927) is usually mentioned by the brazilian
historiography as a historian who did not justify his great knowledge in a
numerous publications. But, when we make a profound study concernig the
letters of intelectual we realize that Capistrano de Abreu did not adjust in the
usual procedures of research divulgation offered in our country, in the turned
of de 19th century to the 20th. In fact, by the use the historian made of his
correspondence – comparable in amplitude with the whole work published
while Capistrano was alive – we believe that our intelectual felt at ease to
Palavras-Chave
Historiografia brasileira – Correspondência – Sociabilidade intelectual .
1 O presente artigo, com algumas alterações pontuais, foi desenvolvido a partir de minha dissertação de mestrado em História Social, História ao portador: interlocução privada e deslocamento no exercício de escrita de cartas de João Capistrano de Abreu (1853-1927), que, sob a orientação do Prof. Elias Thomé Saliba, foi apresentada em maio de 2001, junto ao Departamento de História da FFLCH/USP.
Keywords
“Pretendo voltar à História do Brasil, mas sem gosto, como
um boi que vai para o açougue. No prólogo de Fausto há um
verso que sempre me comove: como Goethe, não terei o livro
lido por aqueles que mais quisera. E além disso a questão
terebrante: o povo brasileiro é um povo novo ou um povo
decrépito? E os fatos idealizados pelo tempo valem mais que os
passados atualmente?” Carta de Capistrano de Abreu para
Mário de Alencar, datada de 18 de janeiro de 1911. (Abreu
Ao fazer a doação das cartas recebidas por Capistrano à Biblioteca Nacional, poucos
meses após a morte do amigo cearense, o historiador português, João Lúcio de Azevedo,
chamava a atenção para a importância que as cartas possuíam, tanto para o
conhecimento de um dos maiores historiadores do Brasil, quanto para a própria história
brasileira. Na epístola, enviada ao diretor da Biblioteca Nacional, Mário Behring, em 7
de março de 1928, João Lúcio dizia que, as cartas,
“encerram curiosas particularidades sobre o viver e pensar do escritor e poderão
servir utilmente a quem um dia pretender traçar o perfil de uma figura de tanto prestígio
entre os estudiosos”. (Abreu 1954: IX)
Por que Capistrano teria se dedicado tanto à correspondência, é uma pergunta que
logo se coloca quando nos detemos na produção epistolar deste historiador. Demonstrou
uma dedicação incomum às cartas, o que está sinalizado no volume que escreveu,
especialmente entre os anos de 1880 e 19272. Este material escrito ganha relevo,
inclusive e especialmente, se cotejado com a produção pública de Capistrano, podendo-
se dizer que rivalizam em quantidade. Mas, mais do que isso, foi no cotejamento com
seus textos públicos que se percebeu a grandeza da correspondência do historiador. E se
o valor das considerações que Capistrano dispunha nas suas cartas, não foi analisado
com acuidade por seus mais conhecidos biógrafos e analistas, o mesmo não se pode
dizer daqueles que o conheceram e que foram seus correspondentes.
Algumas hipóteses podem ser ponderadas no intuito de se cercar os motivos que
2 Esse é o período coberto pelos três volumes editados de sua correspondência.
teriam levado Capistrano a se dedicar, de uma maneira mais dedicada, à escrita de
epístolas. Capistrano nunca saiu do Brasil e, pela profundidade de sua pesquisa ou pelas
questões que levantava, isso seria necessário. As cartas poderiam então cumprir a
função de ligar o historiador aos arquivos e bibliotecas internacionais. Conhecedor do
destino de vários documentos, especialmente aqueles atinentes aos séculos XVI e XVII
brasileiros, Capistrano se dedicava em muito ao pedido de cópias ou cotejamento de
documentos que julgava existirem no Brasil, valendo-se das amizades que se
encontravam fora do país. João Lúcio de Azevedo e Lino de Assunção, por exemplo, o
auxiliavam, uma vez que estavam em Portugal. Paulo Prado poderia eventualmente
A leitura atenta que fez de Varnhagen, antes de 1878, ano de sua morte e mais tarde,
quando convidado a fazer uma edição anotada da História Geral do Brasil em 1903,
talvez o permitisse supor onde se encontrava determinado original ou cópia de
documentos. O trabalho que realizou para a Biblioteca Nacional na Exposição de
História e Geografia do Brasil em 1881, se não foi resultado de conhecimento
prematuramente acumulado sobre a documentação histórica do país, também o orientou
sobre a provável localização de inúmeros textos relacionados à história do Brasil.
Possuidor incansável da aspiração de lançar luz àquilo que dissesse respeito ao passado
brasileiro, Capistrano também se servia da correspondência como meio de acesso
O fato de Capistrano não ter manifestado o desejo de saída do Brasil, bem como a
profunda integração entre seu trabalho e os temas das cartas que enviava, sinalizava
quem sabe, uma explicação para o fato de Capistrano possuir tamanha correspondência.
Questões familiares também poderiam ter pesado para que Capistrano permanecesse no
Brasil e daqui estabelecesse a sua “rede de pesquisa”. A perda da esposa com apenas
nove anos de casamento e o fato de possuir quatro filhos para criar, podem igualmente
ter pesado nessa decisão. Os vínculos profissionais não o seriam, ao menos,
especialmente, a partir de 1899, quando foi posto em disponibilidade no então Colégio
Nacional, antigo Pedro II. A partir de então, sem a obrigação do cumprimento de
horários junto às instituições, o que possuía eram vínculos de trabalho mais informais:
pedidos de estabelecimentos de documentos, textos para coleções (tal foi o caso dos
Capítulos de História Colonial), traduções, prefácios ou artigos para jornais. O trabalho
sobre as línguas bacairi e kaxinawá, talvez fosse aquele que mais tivesse mobilizado
Capistrano neste período, e isto pelo fato de ter de estar com os índios remanescentes
dessas tribos a fim de cotejar o seu estágio de conhecimento sobre a língua e costumes
desses povos. Mesmo assim, era de se supor que Capistrano pudesse se afastar do
Brasil. Os convites para a saída do país existiram. Na correspondência a João Lúcio, há
a menção a uma pessoa – José Pinto Guimarães - que desejava levar Capistrano para a
Alemanha, primeiramente, e depois para a Suíça. Nessa carta, escrita entre 25 e 26 de
junho de 1918, Capistrano indicava o seguinte:
“Há dois meses, na Avenida Rio Branco, dirigiu-se muito apressado para falar o
Paulo Prado. Disse que, obrigado a ficar em casa por um acesso de gota, lera meus
Capítulos e achara seu caminho de Damasco, e convidou-me para almoçar com um
amigo que desejava muito conhecer-me. Chama-se José Pinto Guimarães, é rio-
grandense, foi até o ano passado secretário da legação na Alemanha, agora vai como
cônsul geral em Zürich. Verifiquei ser o mesmo de quem recebera há tempos, antes da
guerra, um recado: que fosse para Berlim, que durante todo o tempo ficaria lá todo o
tempo[sic] que quisesse sem a mínima despesa: continua com a mesma idéia: agora
quer levar-me para Zürich. São simpatias que afinal vexam: nascem espontaneamente e
quando o real não combina com o ideal: aqui-del-rei, estou roubado.” (Abreu 1954a:
A possibilidade de que Capistrano tenha ficado no Brasil por conta de sua
família deve ser ponderada. Neste sentido, contamos com um registro em uma de
suas cartas enviadas a Mário de Alencar, e escrita no dia 9 de janeiro de 1910.
Dentro de um contexto em que contava para Mário, os sentimentos que lhe
provocaram a decisão de sua filha Honorina, de entrar para o convento,
Capistrano se revia e dizia com angústia:
“Considero-me uma ave qualquer que desde vinte anos outra coisa não faz senão
perder penas; as novas não substituem as antigas, e o vôo faz-se cada vez mais rasteiro.
E lá um dia virá, sobre todos desejado, em que cesse a faculdade de voar. Eis o meu
caso, querido Mário. Não sou pessimista, não sou otimista, sou um conformista, quem
sabe? Um satisfeito, mas hoje gosto tanto de não ser obstrusivo! Se não fosse Matilde,
creio que não moraria no Rio, e iria travar alhures relações banais, que são as mais
seguras, pois substituem-se.” (Abreu 1954: 215)
Mas Matilde se casa, Fernando, já casado, faleceria em 1918, e com Honorina
no convento, e Adriano não mais dependendo do pai, Capistrano não saiu do Rio
de Janeiro, salvo nas suas várias viagens que fazia por questões de saúde ou de
trabalho. O trecho acima citado, se evidentemente não nos responde
integralmente a dúvida acerca da permanência de Capistrano no Brasil, ao menos
nos sinaliza que o historiador devotava atenção para com sua família, fato, aliás,
Fosse por motivos familiares, ou não, talvez não tenha saído do Brasil por não
entender que isso fosse necessário. Ao menos não parecia demonstrar que se tratasse de
um problema ou obstáculo àquilo que desejava atingir no estudo da história do Brasil.
Dos problemas que dispôs perante seu trabalho, o primeiro dizia respeito à dificuldade
de se encontrar determinados documentos. E muitas vezes, eles não estavam aqui nem
em nenhum outro local do mundo. Mas se um determinado documento existisse, e
Capistrano conseguisse recuperar o seu destino, era bem provável que algum de seus
correspondentes pudesse encontrá-lo, uma vez que a busca era bem sinalizada pelo
historiador cearense. Nesse sentido, Barbosa Lima Sobrinho, que teve um contato
superficial com as cartas de Capistrano, antes que estas fossem publicadas, apontava
“(.) sem sair do Brasil, Capistrano de Abreu tinha, na memória, uma espécie
de catálogo, ou de guia dos arquivos estrangeiros, sobretudo os de Portugal.
Impressiona, na sua correspondência, verificar que ele sabe onde devem estar os
documentos que precisa. Escreve, daqui, aos amigos como se acabasse de
regressar de longas estadias nesses países e de prolongado manuseio de suas
coleções de documentos.” (Sobrinho 1955: 73)
A referência que Lima Sobrinho fez ao catálogo que Capistrano devia ter na
memória, não deve ser apenas uma figura de linguagem. Como funcionário que
fora da Biblioteca Nacional, Capistrano era um leitor assíduo dos catálogos de
várias bibliotecas, por exemplo, de Lisboa, Évora ou Sevilha. Além disso,
costumava observar quando os autores de obras de história citavam a localização
de um documento numa determinada biblioteca. Daí para encaminhar a checagem
numa carta a algum correspondente que estivesse fora do Brasil, era apenas um
O zelo era de tamanha ordem, que Capistrano inclusive se preocupava em indicar o
copista bem como o preço médio estipulado para a cópia. Na verdade, o historiador
operava com baixos custos: na maioria das vezes suas pesquisas eram patrocinadas por
amigos, como Paulo Prado, por exemplo. Uma demonstração destas preocupações – que
apareceram por várias vezes nas cartas de Capistrano - pode ser observada numa carta
enviada para João Lúcio de Azevedo, datada de 30 de junho de 1916:
"Quando vivia Lino de Assunção, mais de uma vez pedi e recebi de Portugal
cópias a preços módicos. Mais tarde incumbi a um amigo, que ia para a Europa,
de me trazer dois documentos, e chegaram em tais condições que não me
animaram a repetir a experiência. Lino mandava fazer as cópias por pessoas cujas
aptidões conhecia, o que para meus estudos era suficiente. Meu amigo trouxe-as
legalizadas, autenticadas, como se se tratasse de questão judiciária. Daí a
diferença escandalosa. Creio que será possível obter cópias nas condições do
Lino (.). Se os seus trabalhos lhe permitissem tomar a maçada de procurar
copista adequado, desejaria que as cópias fossem feitas só de um lado do papel
para facilitar a impressão, que viessem à medida que fossem terminadas,
registradas e acompanhadas das notas das despesas, que seriam logo satisfeitas."
Mas se não saiu do Brasil em nenhum instante de sua vida, o historiador parecia
simular esta situação através da correspondência. E nesse sentido, é digna de nota a
organicidade presente entre sua vida e a escritura de epístolas. Capistrano deveria passar
de uma leitura para outra, daí para as suas anotações e destas, quem sabe, para as cartas,
de tal forma elas parecem integradas ao trabalho que realizava. Se o que estava fazendo
era a tentativa do estabelecimento da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, as
cartas a Lino de Assunção parecem ser apenas um desdobramento do estudo. Capistrano
indicava as páginas ou trechos expressos dessa obra, sinalizando a Lino onde poderiam
ser encontrados. Se o estudo estava se concentrando nas Confissões e Denunciações da Bahia, as cartas a João Lúcio de Azevedo expunham dúvidas, pedidos de interlocução e
exploravam o estágio atual de seu conhecimento. Para se ter uma idéia, vejamos alguns
trechos da correspondência de Capistrano de Abreu, como este, de uma carta enviada a
Lino de Assunção, datada do dia 12 de março de 1885:
“A história do Brasil é um mundo, e o que existe nos arquivos portugueses pelo
menos um continente. Seria preciso passar muitos anos aí, sem ter outra coisa a fazer,
para dar cabo da tarefa. (.) Disse-me o Leal que na Biblioteca Nacional existem dois
volumes Mss. de cartas dos Jesuítas. (.) Incluo uma lista, - a mais completa que pude
organizar, - dos documentos extraídos da Torre do Tombo e que aqui existem para veres
o que há de novo por lá ainda não conhecido aqui (.)”. (Abreu 1956: 306-307)
Ou este outro, retirado de uma carta enviada ao amigo João Lúcio de Azevedo,
“Desejo os documentos sobre o navio de João de Souza, expedido de
Pernambuco por Martim Afonso, e os de Pero do Campo Tourinho, com que
espero fazer surpresa à gente da Bahia. Desejaria também o que houver a partir
de 1580, até antes da guerra holandesa.” (Abreu 1954a: 32)
Este, retirado de uma carta enviada ao Barão de Rio Branco, escrita no dia 25
“Agora peço licença a V. Ex.ª para fazer um novo pedido (.) foi publicado,
há pouco tempo, o Catálogo dos Mss. Espanhóis do British Museum, organizado
por D. Pascual de Gayangos. Não haverá nele indicada muita coisa sobre o
E, finalmente, este último, sinalizado em uma carta enviada para Oliveira
Lima, datada do dia 25 de setembro de 1900:
“A respeito das estradas da Bahia infelizmente restam-me dúvidas sérias que
não sei como resolver. Talvez a solução se encontre aí em Londres. Existiriam no
British Museum mapas da Bahia e Rio de S. Francisco dos últimos anos do
século XVII e começo do século XVIII?”. (Abreu 1956: 13)
Mas, além da solução pragmática de seus dilemas de pesquisa, entendemos que a
prática da escrita de cartas tenha sido para Capistrano, quase que uma maneira de
oxigenar a sua aspiração por interlocução, não só acerca dos assuntos profissionais, mas
igualmente dos temas mais particulares e privados. Pela abertura que tinha ao tratar das
pessoas que cita – eminentes políticos, ocupantes de cargos públicos de destaque,
escritores ou intelectuais de sua época –, pensamos que este espaço tenha permitido a
Capistrano, manifestar sua personalidade de uma maneira mais direta e menos
problemática. Um exemplo nesta direção, pode ser percebido numa carta que enviou
para Quinquim, filha de Lídia e Assis Brasil, amigos íntimos de Capistrano. Era o ano
de 1919, muito próximo então, dos fortes sentimentos provocados pela perda de seu
filho Fernando. Assim Capistrano se dirigiu à amiga:
“Bucólica Kiki, sua imagem aparece de preferência às horas da tarde, entregue às
lidas de pastora, governando o gado manso, que tem em comum com os brasileiros não
saber se governar pela própria cabeça. Sinto então um momento de saudades e
interrompo o desencanto em que vivo. Amigos, conversas, passeios, livros, tudo passa e
tudo é vão: quem afinal fica reduzido a si próprio é que vê a realidade e conhece como
tudo é insuficiente. Is life worth living?”. (Abreu 1956: 71)
Pelo que se observa, havia uma interação entre a produção de Capistrano, o seu
próprio estado de espírito e a prática de escrita de suas cartas. Essa integração se
acentua, na medida em que se percebe a proximidade entre seus projetos e os assuntos
mais pessoais que abordava em suas cartas. As epístolas de Capistrano, de uma maneira
geral, e diferenciadas de acordo com o correspondente a quem se dirigia, expunham não
só o percurso de seu trabalho, mas as dificuldades mais prosaicas que passava, fossem
da ordem de sua saúde ou afeitas ao espírito. Visto como pessoa obscura, Capistrano se
mostrou mais abertamente em suas cartas o que fazem, evidentemente, com que se
constituam em fontes de primeira grandeza para aqueles que se detêm no estudo da
Em uma carta enviada para Mário de Alencar datada de “12 ou 13 a ½ da madrugada
de janeiro de 1920”, Capistrano apontava o seguinte:
“Que carta longa! Dirá V., se tiver a paciência de chegar até aqui. Bem longa
mesmo! A culpa é da insônia. Preferi, a ler, conversar um pouco.” (Abreu 1954: 219)
O comentário solto, aparentemente despropositado e, após de fato ter escrito uma de
suas maiores cartas, pode ter traído um sentimento contido no historiador, notório
obsessivo pela leitura e que a trocava pela conversa, diga-se, a escrita de uma carta.
Evidentemente que este pequeno trecho de Capistrano, não teria o dom de constituir-se
num argumento razoável que desse conta dos motivos – se é que existiram – para que o
historiador tanto se dedicasse à correspondência. Podemos, no entanto, sugerir, que
Capistrano também aspirasse através das cartas, a constituição de um sentimento de
amizade de sociabilidade ou de aproximação frente às pessoas que gostava. Nesse
sentido, vale a lembrança de que, nas cartas, Capistrano não só se dedicava ao trabalho,
mas também à amizade que nutria por alguns de seus correspondentes. Arriscaríamos
dizer, que Capistrano experimentava sensações raras, e talvez únicas, no exercício da
troca de cartas. E estes sentimentos, pelo que pode se depreender do que foi dito pelos
biógrafos do historiador, não eram corriqueiros, nem tinham vazão em outros espaços
sociais. Conhecido por um certo isolamento, Capistrano deveria exercer grande parte de
sua interlocução através das cartas. Nesta direção, algumas vezes reclamava por uma
resposta de algum destinatário, como por exemplo, Ramos Paz, como se percebe nesse
trecho retirado de uma carta escrita no dia 12 de abril de 1905:
“Não tenho tido cartas suas nem tido recebido notícias. Na última, avisava-me que
iria aquela semana à Torre do Tombo mandar fazer as cópias. Tenho esperado por elas
Ou Afonso Taunay, nesse trecho de uma epístola de 1917:
“Esperava sua carta mas vejo que V. anda preguiçoso. Não se esqueça de me
ver aquilo que já lhe pedi na documentação inédita do Morgado.”. (Abreu 1954:
E finalmente, para Lino de Assunção, neste trecho de uma carta de 1886, que
“Tens-te fartado de festas a valer pelo que vejo dos telegramas, de sorte que
acho a coisa mais natural do mundo que nos hajas inteiramente esquecido. Se nos
mandares já alguma coisa pelo vapor de 10, será para nós uma surpresa, e muito
agradável; bem podes supor.” (Abreu 1956: 334)
Na medida em que muitas de suas cartas apresentavam um prolongamento de seus
trabalhos, pode-se supor que o historiador tenha encontrado um meio de satisfazer suas
intenções profissionais, ao mesmo tempo em que tenha se deparado com uma forma de
se sentir à vontade - o que talvez não ocorresse em meio aos horários e obrigações
institucionais. Há notoriedade em se afirmar que o estado de espírito de Capistrano era
sujeito a grandes variações e, em suas cartas, por vezes se remete a um torpor ou
preguiça que tomavam conta de si próprio. Mas acima de tudo, Capistrano parecia expor
com mais liberdade a sua personalidade, o que não faria tão abertamente de outra forma.
Seus biógrafos e comentadores não escondem os desgostos de Capistrano para uma
homenagem ou comenda que viesse a receber. Suas cartas também podem indicar que
Capistrano, talvez estivesse na capital do país, muito mais pelas possíveis facilidades
profissionais – num sentido mais particular e preciso, no interior da personalidade do
historiador não desejoso do prosseguimento de uma carreira - e não pela vida social, que
também sinalizava uma certa possibilidade de crescimento no meio em que vivia.
Capistrano se indispunha contra as bajulações, conferências ou palestras que somente
demarcavam o poder pessoal, de um ou outro participante ou promotor.
Quando saía do Rio, e por várias vezes, levava consigo o material que estava
trabalhando neste momento. Se este trabalho fosse sobre a língua dos bacairis, os
índios o acompanhavam. A esse respeito, em 1893, veja-se o que Capistrano
“Desde o dia 14 estou aqui na Serra dos Órgãos, a 800 metros do nível do mar, a 6
horas da estação mais próxima da estrada de ferro, a 2 dias dos jornais e do pão fresco.
Aqui vim procurar o sossego moral, que há um ano me faltava, e trabalhar. Tenho
trabalhado efetivamente: estou estudando bacaeri com um índio do Mato Grosso e já
vou bastante adiantado; estou estudando guarani, que desta vez espero conseguir furar;
estou, além disso, traduzindo para a nossa coleção o livro do Dr. Goeldi sobre aves do
Brasil, e já vou bem adiantado3. Foi o Dr. Goeldi quem me arranjou casa aqui, onde
tenho, de graça, verdura quanto a criada pede, e lenha quanto o índio vai buscar no
mato. O mais tudo compro no depósito, na colônia. Vim com meus cinco filhos, duas
criadas e o índio, o que quer dizer que somos 9 pessoas. Ora, nossa despesa semanal é
de 50$, uma maravilha de barateza.” (Abreu 1954: 83)
Buscava refúgios também por conta de seu estado de saúde e muitas vezes
procurava as regiões servidas pelas águas, nas fronteiras de Minas Gerais, São Paulo e
Rio de Janeiro. Vinha a São Paulo que admirava e também o fazia por trabalho: aqui
estava Paulo Prado e antes dele, Eduardo Prado, de quem inclusive cuidou da biblioteca
após o falecimento. Encontrava-se com Martim Francisco Ribeiro de Andrada em São
Bernardo e com Domingos Jaguaribe em São Vicente. É claro que a prática da
correspondência continuava e são várias as suas cartas escritas dos locais onde se
3 Capistrano foi o tradutor dos trabalhos de Emílio Augusto Goeldi; faziam parte da série Monografias Brasileiras, Os Mamíferos do Brasil e As Aves do Brasil, este em dois volumes, de 1894 e 1900, parte previamente divulgada no Jornal do Comércio, naquele ano.
encontrava, em pesquisa ou a passeio. Em uma destas viagens, em 1920, para se ter uma
idéia, Capistrano relatava a Paulo Prado como estava se dando em Caxambu:
“Fiz bem em ir a Caxambu. Quem quer vai para hotéis caros, obrigado à diária de
20$ ou pouco menos, com roleta, danças, música, excursões a cavalo e flirt. Dizem que
a coisa não passa disto, embora às vezes plantem verdes para colher maduros além da
Mantiqueira. É a vida racional: os aquáticos precisam de mudar de pele, ou deixar o
veneno, como fazem as cobras quando vão beber.” (Abreu 1954a: 396)
Evidentemente deve-se tomar alguns cuidados, no sentido de não se superestimar a
importância da correspondência de Capistrano no interior de sua vida de pesquisador. A
correspondência não era certamente o único canal de estabelecimento da teia de
pesquisa de Capistrano. A troca e a interlocução deveriam igualmente se manifestar
entre ele e, por exemplo, Rodolfo Garcia, aquele que continuaria, tanto o trabalho das
anotações à História Geral do Brasil de Varnhagen, quanto os estabelecimentos dos
volumes da Série Eduardo Prado. Mas Rodolfo Garcia vivia no Rio, assim como
Manoel Said Ali, também professor do Pedro II e que foi de grande valia nos trabalhos
em torno das línguas kaxinawá e bacairi. Mas, não foram poucos os projetos de
Capistrano que levaram suas pesquisas para fora do país, uma vez que costumava se
deter nos assuntos relativos aos séculos XVI e XVII. Era necessário que suas buscas o
conduzissem aos arquivos portugueses onde João Lúcio ou Lino de Assunção teriam a
facilidade da locomoção. Parece-nos que, no caso destas relações, a correspondência
cumpria o papel da plena interlocução, uma vez que não houve nenhum momento de
encontro real destes historiadores com Capistrano de Abreu.
Nestes contatos, o que se revelaria era uma grande reciprocidade havida entre
Capistrano e seus correspondentes. A correspondência permitia que houvesse, não só o
intercâmbio de textos, bem como a ponderação de seus elementos qualitativos. Nesse
aspecto, os trabalhos de Capistrano para com Paulo Prado ou João Lúcio, eram
acompanhados de lado a lado. Estes historiadores refletiam sobre a pesquisa que
Capistrano realizava e o mesmo era feito pelo historiador cearense. No que dizia
respeito a esta avaliação conjunta do trabalho, não acreditamos que haja algo de novo
uma vez que, como colegas, envolvidos em atividades ou projetos comuns, o natural é
que existisse uma interlocução. Evidentemente, a importância maior desta troca de
informações é o fato dela estar presente copiosamente, nas cartas enviadas por
Capistrano para estes pesquisadores. E por se tratar de um elemento valioso para a
aproximação, tanto da prática do historiador quanto para a de seus correspondentes, a
correspondência de Capistrano, mesmo que com o risco de ter superdimensionada a sua
importância, nos abre a obsessão do historiador pela pesquisa. E a maneira com que
buscava a reflexão sobre algum aspecto da história ou a luta para que se encontrasse
determinado texto ou documento, nos levam à formação deste juízo.
A rede de pesquisa constituída na correspondência de Capistrano de Abreu
pode ser mensurada pelos trabalhos que foram encaminhados a partir das cartas.
Em primeiro lugar, as cartas de Capistrano a Lino de Assunção entre os anos de
1885 a 1893 (Abreu 1946):, aquelas dirigidas a João Lúcio de Azevedo entre os
anos de 1916 e 1927 (Abreu 1954a: 9-385) e a correspondência para com Rodolfo
Garcia realizada entre os anos de 1919 e 1927 (Abreu 1954a: 486-500) trazem
elementos que concerniam à pesquisa nos arquivos portugueses com vistas à
edição da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, documento que foi
estabelecido por Capistrano de Abreu e que começou a ser publicado em
capítulos no Diário Oficial entre os anos de 1886 e 1887. A primeira edição
completa da obra sairia em 1889, sendo que Capistrano ainda daria uma outra
edição em 1918, acrescida de um prefácio e de prolegômenos que antecederam
cada um dos cinco livros que compunham o trabalho do jesuíta. A trajetória rumo
ao estabelecimento e publicação desta obra - que remonta à Exposição de
História e Geografia, aberta na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1881,
no dia do aniversário de Pedro II a 2 de dezembro4 -encontrou-se fartamente
narrada nestas cartas. Mesmo que o Catálogo da Exposição de História do Brasil
fosse tomado como o ponto alto desta exposição, a História do Brasil de Frei
Vicente do Salvador tornou-se o centro das atenções. No prefácio que deu à
edição da obra em 1918, Capistrano expôs como este texto chegou até a
Biblioteca Nacional e como conseguiu editá-lo de 1889. Na correspondência a
Lino de Assumpção, Capistrano abordava os problemas que enfrentava com o
então Diretor da Biblioteca Nacional, Saldanha da Gama - que não desejava que
fosse dada a edição da obra de Frei Vicente do Salvador por Capistrano (Abreu
1956: 328-333) -, e a prática de pesquisa nos arquivos portugueses, por conta de
4 A exposição ocorreu até 2 de janeiro de 1882.
seu desejo de dar uma edição ao público deste documento - o primeiro livro de
história do Brasil, feito por um brasileiro, e que levava como título, o nome do
país. Nas cartas endereçadas a João Lúcio, Capistrano estava às voltas com a
segunda edição da obra e, neste sentido, eram retomadas as questões que
envolviam a procura pelos trechos que faltavam no texto de Frei Vicente, bem
como o procedimento técnico de pesquisa, fosse da escolha do copista de
documentos ou dos trabalhos de edição dos exemplares em São Paulo.
Em segundo lugar, a pesquisa, o pedido de cópias e o estabelecimento de
quatro documentos que fizeram parte da “Série Eduardo Prado: Para Melhor se
Conhecer o Brasil”, História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão, de Claude d’Abbeville, Confissões da Bahia, resultantes da Primeira
Visitação do Santo Ofício ao Brasil, em 1591-92, as Denunciações da Bahia de
1591-1593 que também faziam parte da Primeira Visitação do Santo Ofício ao
Brasil e o Diário de Pero Lopes de Souza (1530-1532). A correspondência
destinada a João Lúcio de Azevedo bem como, aquela dirigida a Paulo Prado
(Abreu 1954a: 386-485), trazia dados de pesquisa, qualificação e caracterização
de fontes, além de elementos que diziam respeito à própria prática de coleta de
documentos, do processo de obtenção dos mesmos que se encontravam em
arquivos portugueses e da própria prática de edição destes textos. Nesse sentido,
a correspondência com Paulo Prado e João Lúcio enfatizava aspectos que iam da
escolha de copistas, dos tipos adequados à melhor impressão, da quantidade da
tiragem, considerada ínfima por Capistrano, e das editoras que poderiam realizar
o trabalho. Os prefácios de Capistrano de Abreu aos respectivos volumes (Abreu
1932) desta coleção também perfazem importantes materiais de consulta quando
Em terceiro lugar, a correspondência de Capistrano de Abreu bem como
alguns de seus artigos de jornal e prefácios, nos deram indicações quanto às
descobertas que fez de que Fernão Cardim era o autor de Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil e de seus Costumes, Adoração e cerimônias, de que
Brandônio era o real autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil e, finalmente,
da descoberta de que André João Antonil, o autor de Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, era de fato João Antonio Andreoni. Para o caso
de Fernão Cardim, temos a Introdução dada por Capistrano de Abreu na 1ª edição
de 1881, presente nos Ensaios e Estudos (crítica e história), 1ª série (Abreu
1931: 179-191) além de um artigo publicado n’O Jornal de 27 de janeiro de
1925, constante da 2ª série dos Ensaios e Estudos (crítica e história) (Abreu
1932: 323-340). A referência à descoberta que concerne à obra de Brandônio se
encontra no estudo publicado sob o título “Revistas Históricas” no Jornal do Comércio de 24 de novembro de 1900 e de 24 de setembro de 1901 e é texto que
consta da 1ª série dos Ensaios e Estudos (crítica e história) (Abreu 1931: 299-
336). A identificação de Antonil se encontrava relatada em especial, mas não
somente, na correspondência com João Lúcio de Azevedo (Abreu 1954a: 223).
Destas buscas e descobertas de Capistrano, esta última é a que se encontra mais
referenciada nos textos de seus comentadores, principalmente aqueles que
puderam tomar contato com sua correspondência, uma vez que somente ali, o
caso da descoberta se encontra narrado por Capistrano. Apesar de ser o
identificador de Antonil, coube a Afonso de Taunay o estabelecimento de
Cultura e Opulência (Abreu 1954a: 223), o que não entusiasmou Capistrano à
elaboração de um estudo mais aprofundado sobre a obra, como ele próprio
Em quarto lugar, a correspondência com João Lúcio de Azevedo, com
Guilherme Studart (Abreu 1954: 139-188) - entre os anos de 1892-1922 - e com
Rodolfo Garcia nos fornece indicações acerca do trabalho de anotação à História Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen. Além das pistas documentais
que perseguia, da quase decifração de algumas passagens da obra, a cartas
contavam acerca do incêndio ocorrido em 1907 na Companhia Tipográfica do
Brasil, onde se encontrava grande parte das anotações de Capistrano. A partir de
então, coube somente a Rodolfo Garcia o prosseguimento da organização e das
notas à volumosa obra do historiador sorocabano. De qualquer forma, Capistrano
escreveu e publicou a nota preliminar do primeiro e único tomo desta obra no ano
de 1906, sendo que trabalhava nesta investida desde 1902. A correspondência
com João Lúcio de Azevedo nos mostra que Capistrano retomou as anotações à
obra de Varnhagen em 1916, com vistas a uma nova edição de suas
Em quinto lugar, a correspondência de Capistrano de Abreu, enviada para
vários de seus correspondentes, nos insere no cotidiano de seu trabalho em torno
da gramática e dos costumes das tribos bacairis e kaxinawás. Além das cartas, o
texto “Os Bacaeris” (Abreu 1938: 217-274) e o prefácio à obra Rã-txa hu-ni-ku-i – A Língua dos Caxinauás do Rio Ibuaçú, Afluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá) publicada em 1914, nos trazem importantes elementos acerca de seu
trabalho de pesquisa sobre os hábitos e as línguas bacairi e kaxinawá5. As cartas
de Capistrano de Abreu a um número variado de destinatários como, Luís Sombra
(Abreu 1956: 17-65) ou João Lúcio de Azevedo, expunham, desde a intenção do
trabalho do historiador, aos contatos diários que teve com seis índios, dentre eles,
Irineu, que era bacairi, Borô (chamado de Vicente, por Capistrano) e Tux-i-ñi
(tratado nas cartas de Capistrano como Tuxinin) que eram kaxinawás. Dos
comentadores da vida e obra de Capistrano, observamos que, expressamente
aqueles que tomaram contato com sua correspondência, fizeram um número
maior de referências às experiências de Capistrano no contato diário com os
índios. As cartas enviadas pelo historiador, possibilitam o fornecimento de um
número maior de informações sobre estes trabalhos, além de dirimirem alguns
equívocos observados nos textos de analistas que se detiveram sobre o assunto6.
Na verdade, através da leitura da correspondência do historiador, podemos perceber
que houve uma primeira fase de estudos sobre os bacairis, que se situou entre os anos de
1884, quando observamos o recebimento de duas cartas do professor Netkens de Matos
e que versavam sobre a etnologia indígena (Abreu 1956: 113-119), e 1895, quando se
deu a publicação do texto de Capistrano sobre esta tribo. Os trabalhos de Capistrano de
Abreu sobre os bacairis, seriam retomados numa segunda fase que se situou entre 1915,
quando o historiador iniciou uma revisão de seus estudos - por entender que muito ainda
havia para ser feito -, e 1927, ano de seu falecimento. Esta segunda investida,
diferentemente da anterior, não redundou em nenhuma espécie de publicação. A leitura
da correspondência de Capistrano possibilita que se perceba toda uma série de
dificuldades, que passavam pela falta de tempo exclusivo de dedicação ao trabalho, e
pelos problemas que concerniam às tipografias do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
5 Capistrano de Abreu publicou dois textos no Jornal do Comércio nos dias 25 de dezembro de 1911 e 7 e 14 de janeiro de 1912, com o nome de “Dois Depoimentos”. 6 Ronaldo Vainfas, por exemplo, em nota explicativa que dispôs na resenha que fez sobre Capítulos de História Colonial, incidiu em dois enganos. Em primeiro lugar, aponta que Capistrano teria passado a estudar bacairi de uma forma sistemática desde 1909. Em segundo lugar, leva o leitor a entender que em virtude destes estudos, veio Capistrano a publicar Rã-txa Ru-ni-ku (Sic). (Mota 1999: p.173).
Tratou-se também de um período de fragilização, emocional e física, o que fazia com
que Capistrano modificasse seus hábitos, impossibilitando-o de uma entrada mais
profunda no trabalho. Os trabalhos de Capistrano em torno dos kaxinawás ocorreram
entre 1909, quando se encontrava na fazenda Paraíso, propriedade de Virgílio Brígido,
seu amigo, e que se localizava às margens do rio Paraíba, no estado do Rio de Janeiro, e
1914, ano em que se deu a publicação do referido livro. Tratou-se de uma investida
mais segura cujo resultado, de uma forma ou de outra, foi positivo para o historiador.
Em sexto lugar, a correspondência contempla aspectos de sua pesquisa e,
especialmente, do texto que elaborou para o Centro Industrial do Brasil sob o
título de “Breves Traços da História do Brasil Colônia, Império e República”, e
que fez parte da obra O Brasil – Suas Riquezas Naturais. No ano de 1907, este
texto seria publicado como separata, com o título de Capítulos de História Colonial, a única obra de história strito senso publicada em vida de Capistrano
de Abreu. Sua correspondência nos forneceu indicações de seus desejos de
publicação uma segunda edição deste título, fato que não se realizou.
A correspondência se remete, não somente ao método de pesquisa de
Capistrano de Abreu, mas também, aos esforços no sentido de editar alguns
documentos que considerava capitais para a história do Brasil. De fato,
Capistrano se referia muitas vezes ao trabalho de cópia de textos e manuscritos
relativos aos assuntos que estudava, e que se encontravam em arquivos ou
bibliotecas européias. Referia-se também às preocupações concernentes à
publicação destes documentos no Brasil. É assim que, em meio à
correspondência, Capistrano nos introduz a todo um procedimento de trabalho e
edição de textos – qualidade do trabalho dos copistas; preços de seus serviços;
editoras existentes no Rio e em São Paulo; preços e qualidade das edições;
trabalhos de tipografias; forja dos tipos de ferro; precariedade das editoras e
perfil dos editores; trabalhos dos alfarrabistas, etc. A leitura de algumas cartas,
permite então, que nos aproximemos da prática editorial de Capistrano de Abreu,
o que pode nos levar ao acesso relativo aos trabalhos de edição na virada para o
século XX. O tema da impressão e da edição dos trabalhos que, tanto Capistrano
quanto alguns de seus destinatários realizavam, esteve presente principalmente
nas cartas de Capistrano de Abreu enviadas para João Lúcio de Azevedo, Paulo
Da maneira com que Capistrano se relacionava com sua produção epistolar, somos
introduzidos na complexidade de sua existência. De tal forma, não se pode dissociar
seus estados de angústia promovidos pelas dificuldades impostas pelas instituições que
se vinculava, pela tristeza propiciada por perdas familiares, pela felicidade juvenil
quando do relato de uma descoberta considerada capital para a História do Brasil, dentre
outros aspectos que se configuram. Num certo sentido, pela extensão de sua produção
epistolar, pareceu-nos que Capistrano tenha buscado atingir um certo equilíbrio
existencial, na medida em que se satisfez na escrita de tantas missivas. Além disso, há
um outro fator a ser pesado e que diz respeito à sociabilidade. Capistrano,
evidentemente, tinha liberdade na escolha de seus correspondentes bem como dos
assuntos que tratava. Nesse aspecto, as cartas são uma espécie de veículo de transmissão
daquilo que mobilizava o historiador. Cumpriram também a função de interlocução
subjetiva, na medida em que Capistrano se abria e se relativizava. As epístolas
possibilitavam a canalização de sentimentos mais angustiantes ou difusos e permitiam a
exploração das incertezas de Capistrano de Abreu. Num sentido, a imagem do “lobo da
estepe”, criada por Brito Broca para introduzir alguns aspectos da vida de Capistrano de
Abreu, vai se alterando, uma vez que o historiador se mostrava mais aberto em suas
Talvez uma das respostas cabíveis a questão inicial deste texto, quanto ao fato
da dedicação incomum de Capistrano às cartas, seja a possibilidade de desabafo
das incertezas que mais o atormentavam, fossem relacionadas ao trabalho ou a
própria vida particular. Exercício indissociável de sua própria vida, a escrita de
cartas pode ter preenchido o espaço que poderia ser destinado à elaboração de
uma grande história do Brasil. Em última análise, a prática de escrita de
epístolas, pode ter vindo como resposta a um sentimento de deslocamento frente
à formalização dos conhecimentos históricos de Capistrano de Abreu.
Arriscaríamos a dizer, que esta grande obra se encontra delineada nas intenções,
incertezas e angústias que se acham com generosidade na correspondência do
historiador. Obra, sem dúvida informal, mas que, talvez por essa mesma razão,
permitiu que Capistrano a escrevesse mais à vontade, longe das exigências
sociais, do carreirismo e das titulações superficiais. Uma vez inserida e associada
invariavelmente ao interior da vida de Capistrano, a prática incisiva da escrita
das cartas, pode revelar uma das soluções encontradas pelo autor frente aos seus
dilemas mais profundos. E alguns destes, podem ser avaliados pela análise dos
temas mais subjetivos que foram abordados na sua correspondência.
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